A Ciência da Mente

Por: Lama Padma Samten

Trecho da palestra do Lama Padma Samten na Universidade São Marcos (projeto Universo do Conhecimento), em agosto de 2006.

A noção de neutralidade da ciência não é completamente verdadeira, ela é apontada por S. S. o Dalai Lama como um obstáculo num certo sentido. Eu vou trazer essa reflexão para vocês. Hoje, quando olhamos a ciência, temos a tendência de acreditar que qualquer linha de investigação e de pesquisa é útil, porque afinal estamos descobrindo coisas que estão aí para serem descobertas. Então o cientista é um ser que investiga e olha de forma profunda a realidade que se dá no seu entorno. No entanto, na visão budista o que ocorre é assim: nós não descobrimos propriamente o mundo externo, nós descobrimos possibilidades de relação.

Por exemplo, quando nós temos um equipamento experimental e vamos medir uma partícula, na verdade não estamos medindo uma partícula, nós estamos estabelecendo relações entre aquilo que nós chamamos partícula e aquilo que chamamos de equipamento experimental. Quando essas medidas se dão, especialmente na física microscópica, de modo geral (Niels Bohr até chamava a atenção disso), antes de medirmos a partícula, nós nem mesmo sabemos que ela existe, tão diminuta ela é. Depois que ela foi medida, aí nós temos certeza de que ela não existe mais, porque pela interação ela se decompõe, ou passa a fazer parte de outros sistemas. Assim, a partícula é algo quase abstrato. Quando nós medimos essa partícula, no momento da interação com o equipamento experimental, aquilo que a gente chama equipamento experimental, nós vemos as propriedades. Mas não há como separar as propriedades da partícula das propriedades do próprio equipamento, porque ela se revela no contato com o equipamento.

Por exemplo, se eu bater aqui na mesa, vocês ouvem, não ouvem? A gente podia pensar: esse é o som da mesa. Mas isso não é verdade, porque se a mão não batesse, não haveria som. Esse é o som da mão também junto com a mesa, mas por uma simplificação nós dizemos: esse é o som da mesa. Esse é o som do chão, esse é o som da mesa, são diferentes. Esse é o som da minha perna. Agora, seu eu bato uma mão na outra, pelo mesmo critério eu digo: esse é o som da mesa, esse é o som do chão, esse é o som desta mão. Mas não. Eu sou obrigado a entender que o som é das duas mãos, não há o som de uma mão. Então esse é o exemplo budista: qual é o som de uma única mão? Não há isso, os fenômenos são conjuntos. Quando nós fazemos os experimentos na ciência clássica, temos a sensação de que medimos algo que está diante de nós e que o equipamento experimental não tem nenhuma função. Então em verdade nós estamos estabelecendo a propriedade dessa relação entre a mão e os objetos.

Nós estamos criando correlações e, a partir dessas correlações, podemos produzir sons específicos que agora já sabemos como são. Então nós criamos formas de manipulação e de produção de outros resultados. A ciência, na visão clássica, começa a descrever os objetos como se os objetos tivessem propriedades. Aí nós começamos a compor objetos e manifestamos essas condições aonde eles manifestam as propriedades que a gente aspira. Por isso nós somos capazes, hoje, de tomar pedras e fazer naves espaciais que se elevam, não tem nada ali que não sejam pedras que se elevam e se dirigem a Marte, chegam em Marte, pousam e rodam como carros em Marte. Extraordinário. Mas não podemos dizer que a gente descobriu coisas, nós fomos estabelecendo conhecimentos de correlações, nós não conhecemos nada separadamente de fato. Então nós podemos também decidir que tipo de correlações nós vamos estudar. Nós podemos dar uma direção para o próprio estudo e para a própria pesquisa.

Sua santidade o Dalai Lama introduz um tema difícil de ser tratado, que é o tema da ética na relação com a pesquisa, com a ciência. Então ele diz que não haveria nenhuma razão para nós pesquisarmos, por exemplo, coisas ofensivas à humanidade, coisas cujo conhecimento vão ameaçar a vida, vão ameaçar a nossa felicidade. Não tem nenhum sentido nós ficarmos descobrindo como matar uma maior quantidade as pessoas, como envenenar os seres, como produzir malefícios. Nós poderíamos usar a mesma energia canalizando-a na direção de obter resultados ou métodos para nos tornarmos mais felizes. Como a ciência, por exemplo, na medida em que ela não está descobrindo as coisas do universo, mas como uma engenharia, está estabelecendo construções de conhecimento, nós deveríamos estabelecer construções de conhecimentos positivos.

Por exemplo, os cientistas do passado estudaram, com muito cuidado, como as bombas nucleares podem existir. Depois as academias militares de ciência e de engenharia estudam, com muito cuidado, como lançar bombas para que o recurso do contribuinte tenha um maior resultado, ou seja, o contribuinte paga as bombas, então ele precisa ter mais gente morta por moeda investida. Mas isso não é algo muito interessante, é preferível estudar de outras formas. Do mesmo modo a gente pode pensar: os cientistas descobriram modos maravilhosos de controlar pestes e insetos; isso parece que é uma ciência completamente pura. Mas essa ciência traz embutida dentro de si a noção da monocultura, a noção de grandes centros urbanos, uma certa visão de sociedade que tem esses próprios problemas. O cientista diz: as pessoas têm tais doenças mentais, têm tais questões, então nós precisamos ter tais drogas que aliviem os sintomas dessas coisas. Isso está correto. Mas quando nós diagnosticamos as pessoas é importante entender que esse diagnóstico se dá dentro de uma cultura, dentro de uma visão de mundo, dentro de uma experiência de normalidade que pode não ser absoluta.

Assim, quando nós começamos a olhar desse modo, vemos que aquilo que é descoberto pela ciência tem pressupostos e estes pressupostos têm bases culturais, bases econômicas, bases arquitetônicas, concepções de vida e concepções espirituais específicas. A ciência é completamente dependente desses fatores todos. Quando nós pensamos assim: a ciência é neutra, pura, é um conhecimento da natureza que é externo a nós, isso não é completamente verdadeiro. Essa sensação de que nós estamos estudando aquilo que é externo nos elimina a possibilidade de introduzirmos a questão da moralidade e da ética dentro do trabalho da ciência. Talvez nós estejamos justamente nesse ponto onde precisamos introduzir a ética não apenas na ciência, mas também na economia, também na produção, nos sistemas de produção, na organização humana e na ciência naturalmente. Introduzirmos a ética na ciência é algo realmente necessário. Se não descobrimos isso, seguimos nessa rota problemática que estamos vivendo hoje, em nossa civilização planetária, que nós sabemos insustentável, mas não encontramos métodos e nem mesmo linguagens para tratar de forma adequada essa questão. Então precisaríamos introduzir na pesquisa científica, no trabalho acadêmico, a visão da ética e da moralidade também.