Vida de Meditante: Superando Obstáculos - Parte I

Por: Lama Padma Samten

Ensinamento concedido em setembro de 2000 no CEBB Caminho do Meio

Neste texto, utilizando a estrutura dos oito passos do Nobre Caminho do Buda, abordarei obstáculos que surgem aos praticantes de meditação. Não só os que se manifestam durante a prática formal sentada, mas também os que surgem na vida cotidiana. Assim temos a agitação durante a prática formal, a grande diferença que parece existir entre os estados meditativos e as condições mentais necessárias à vida no mundo, e, também, uma aparente inadaptação dos meditantes a enfrentar um mundo externo competitivo e hostil. Inicialmente examinarei a questão da estabilidade da mente durante a prática formal, sem o que a meditação não é possível.


A questão da estabilidade da mente

Quando nós examinamos o ensinamento do Buda, percebemos que ele fala sobre paz, paciência, serenidade, a kshanti paramita. Quando examinamos a estrutura do pensamento do Buda, percebemos que esse passo diz respeito a liberar o praticante do domínio da cobra e do galo. A cobra é a raiva, a aversão, o ódio, o medo, e o galo é a intranqüilidade, a agitação, a atividade incessante, a aflição. Estes são os dois elementos que perturbam a serenidade do praticante. Se estes elementos simbolizados pela cobra e pelo galo estiverem presentes, inevitavelmente a paz estará perdida e a prática de meditação formal será inócua.

Quando perdemos a serenidade isso não se mostra apenas no cotidiano. Mesmo que sentemos para praticar meditação nossa mente vai girar. Experimentaremos aflição ainda que sentados na postura formal e em silêncio. Sem a serenidade, imagens surgem em nossa mente, temos impulsos de ação, surgem muitos diferentes pensamentos e prioridades.

Surgindo estas prioridades, o praticante pode cogitar que lhe falta algum ensinamento especial para que seja capaz de “controlar” sua mente. Com essa expectativa o praticante pode até desanimar, imaginar que sua prática, sem falar na vida cotidiana, estão perdidas e que nunca vencerá esse obstáculo. Há praticantes que sustentam seu esforço por longos anos, sem progresso visível, obstaculizados que estão por fatores sutis.

Outros praticantes podem substituir a agitação e a raiva pela sonolência e indolência. Em lugar da agitação, surge outro estado que também é simbolizado pela ação do galo, mas que nesse caso conecta-se com a qualidade da obtusidade mental. Dominados pela raiva, pela agitação, ou ainda pela depressão, os praticantes podem desenvolver esperança numa direção errada — podem realmente imaginar que falta alguma técnica específica em sua meditação. Podem vir a ansiar por alguma habilidade especial que aparentemente ainda não esteja presente e que seja capaz de dissipar estes obstáculos durante a própria prática formal.


Serenidade e meditação

É necessário desenvolver uma perspectiva abrangente dos ensinamentos. Quando Buda dá instruções sobre meditação formal, em geral estes ensinamentos correspondem à sexta etapa do nobre caminho óctuplo. Esta etapa é precedida pelos ensinamentos que dizem respeito à prática da serenidade e da paciência, que por si só são parte das instruções do Buda com relação a forma de viver e praticar durante a própria vida cotidiana, a quinta etapa. Se não houver uma compreensão adequada deste item de serenidade e paciência, será muito difícil progredir na meditação formal sentada. Portanto, segundo o ensinamento do Buda, fica claro que esta etapa, a que nos capacita a vencer a agitação da mente durante a meditação é, na verdade, uma atitude básica. É para ser praticada na própria vida cotidiana, antes mesmo de sentar na nobre postura silenciosa de sete pontos ensinada pelo Buda. Em verdade é um pré-requisito para ela.

Quando o Buda fala sobre esta etapa da paciência e da serenidade no “Sutra do Diamante”, ele enfoca o assunto não no sentido de como a paciência é gerada, mas no reconhecimento de que nossa condição básica é de paciência e serenidade. Ou seja a serenidade e a paciência são vistas como atributos naturais da mente e não algo construído por hábito, através de um treinamento, por exemplo.

Esta condição básica é perdida pela ação dos dois animais, a cobra e o galo, que, por sua vez, são potencializados por um terceiro animal, o javali. Este simboliza nossas fixações, nosso auto-interesse.

Portanto, quando procuramos a serenidade devemos pensar em como remover estas fixações, este é o ponto importante. A mente oscilando durante a prática é um obstáculo básico que está ligado a ação do javali e, por conseqüência, dos outros dois animais. Ele se mostra como nossas fixações, e dessa forma surge dentro de nossa meditação como flutuação da mente, das energias e emoções na forma do galo e da cobra.

Operando segundo fixações, o javali se estrutura na forma de guardiões de nossas atividades cotidianas. Devido a estas fixações surgem ganhos e perdas potenciais. Então criamos em nossa própria mente como que servos, guardas, assessores: partes nossas que colocamos a vigiar todas estas atividades e fixações que temos. Nossa mente permanece operando sob condições específicas e fornecendo impulsos de ação, acionando campainhas de alarme quando certos eventos ou desequilíbrios ocorrem. Quando eventos ameaçadores são localizados, é como se já existisse uma autorização prévia para esses assessores invadirem nosso silêncio e nos fornecerem relatórios constantes.

Quando temos a mente agitada em meio a meditação, podemos observar que nenhum dos conteúdos da agitação mental é realmente supérfluo sob o ponto de vista dos valores o objetivos de nossa vida cotidiana. Eles dizem respeito a atividades nossas, áreas que visitamos regularmente, seja através de pensamentos, emoções ou identidades que surgem em meio a condições. Por isto é essencial purificarmos nossas motivações usuais da vida, reintroduzindo o sentido profundo da moralidade.


O primeiro passo do nobre caminho

O primeiro passo do nobre caminho é realmente básico, nenhum praticante que deseje sucesso pode passar por cima disso. Ele diz respeito a motivação correta frente à vida e ao caminho espiritual, ou seja, o correto propósito. Ele pode ser melhor entendido através da explicação de Sua Santidade o Dalai Lama sobre a motivação básica dos seres sencientes em geral, que é a liberação do sofrimento e a experiência de felicidade. Sua Santidade explica de uma maneira muito simples e poderosa: “se você obtém felicidade na dependência de fatores instáveis, impermanentes, se busca sua liberação do sofrimento através de fatores flutuantes, a agitação certamente nunca cessará.” Com refúgios frágeis, teremos que nos manter incessantemente em movimento, como um equilibrista que não pode parar um minuto de mover-se compensando os desequilíbrios.

O verdadeiro refúgio não é algo que surge externamente, separado de nossa natureza última. Também o correto propósito não é um movimento que surja como uma recomendação ou ordem de algum “ser superior”. A princípio pode nos parecer que surgirá alguém que fornecerá um código a que teremos que nos adequar, mas uma das peculiaridades do pensamento budista é exatamente a reintrodução da moral e da ética como uma forma de liberdade nossa, não por uma adaptação a uma ordem externa. Em nossa cultura tradicional sentimos freqüentemente a ética e a moral como se fossem imposições externas sobre nós, e muitas vezes surge um desconforto nesse processo. Portanto devemos observar esse aspecto precioso do Darma, o fato de que realmente não impõe uma moral ou ética externas.

A moral e a ética ressurgem devido ao nosso objetivo fundamental que é a liberdade e o afastamento do sofrimento. Se desejamos esse resultado, temos um referencial segundo o qual podemos raciocinar. A conclusão desse raciocínio nos indica a necessidade de repousarmos sob fontes seguras de refúgio. Essas fontes seguras de refúgio, no caso do budismo, se traduzem como a natureza da liberdade, a natureza da criatividade e a natureza da compaixão. São como que três dimensões que representam a natureza última da mente, a natureza final não-construída, além de espaço-tempo, nome e forma, vida e morte. Essas três palavras parecem ter um sentido convencional, mas isso é um problema da nossa linguagem. Os meditantes, na medida que aprofundam sua compreensão, reconhecem o aspecto ilimitado presente nessas três palavras, e percebem sua unidade inerente.

Dessa forma, se nos fixamos em fatores transitórios, inevitavelmente vamos oscilar em meio a condições flutuantes. Por outro lado, se através de um propósito claro de suas mentes, repousarmos sob aquilo que não se move, sob a natureza última, então repousaremos sob a liberdade correspondente. E com isso atingiremos a realização do primeiro passo do nobre caminho.