Vida de Meditante: Superando Obstáculos - Parte II

Por: Lama Padma Samten

Evitando as ações não-virtuosas

Atingindo essa realização, os três outros seguirão de forma natural. Em corpo, fala e mente não cometeremos ações de matar, ou ações de roubar, ou conduta sexual que venha a trazer sofrimento a nós e outros seres, tampouco mentiremos, ou agrediremos verbalmente, ou promoveremos discórdia, ou ainda falaremos inutilmente. Tampouco daremos ensinamentos heréticos, ou nos vincularemos a um processo de carência, ou desenvolveremos aversão, raiva, ódio e medo. Assim contamos dez “ações não-virtuosas” que os praticantes evitam. Eles as evitam de forma natural, espontânea, ancorados pelo correto propósito desenvolvido no primeiro dos oito passos do nobre caminho. Esta é uma prática sem esforço, estes três passos adicionais surgem como controle de qualidade de nossa motivação, ou seja, do nosso correto propósito.

Observando isso percebemos o efeito poderoso desses quatro primeiros passos. Eles são os responsáveis pela estabilidade que venha a surgir em nossa mente durante a prática formal. Se temos um reto propósito, naturalmente evitaremos as dez não-virtudes, e praticaremos as dez virtudes correspondentes, e rapidamente apresentaremos um comportamento sereno tanto na vida cotidiana quanto ao sentar para a prática formal. E não há nisso nenhum tipo de repressão ou imposição.

Apesar disso, quando os praticantes percebem isto, vêem que mesmo que o objetivo inicial seja perseguido, ou seja, que busquem efetivamente o correto propósito e que evitem as dez ações não-virtuosas, ainda assim, inexplicavelmente, surgem eventualmente os impulsos dessas ações, em corpo, fala e mente. A mente, mesmo que entenda quão impróprio seria agir dessa ou daquela maneira, ainda segue manifestando impulsos indesejáveis, e a sua prática de meditação é invadida pela agitação. Dessa forma são necessários ensinamentos adicionais.

Estes ensinamentos correspondem a uma transição importantíssima. Até esse momento, ao evitar as dez ações não-virtuosas e praticar as dez ações virtuosas, e ao manifestar o corrreto propósito, estes ensinamentos, porém, ainda dizem respeito a um certo auto-interesse. Ainda há alguém que ouve o ensinamento com um desejo pessoal de liberação do sofrimento. Mesmo que exista grande mérito, curiosamente, o ser que segue esse ensinamento é de fato um javali, tem ainda a motivação limitada. Este ser pode estar sentado com as pernas cruzadas como um Buda, mas é necessário que a motivação de auto-interesse seja transcendida.


A quinta etapa

Pela compaixão dos Budas e Bodisatvas, surge, então, o ensinamento correspondente à quinta etapa do nobre caminho do Buda, cuja descrição é o cerne deste texto. No zen isto é simbolizado pela afirmação de mestre Dogen "quando sentamos em meditação, praticamos inseparáveis de todos os seres". Isso soa como um koan: os seres parecem separados, enquanto estamos sentados na sala de meditação eles estão fazendo várias coisas por todos os lados, então o que significa essa inseparatividade? Como solucionar isto?

Os grandes mestres também afirmam que se nossa prática de meditação é uma forma de lucidez diferente da lucidez do período que a precede e do período que a sucede, isto é um problema... A prática não pode ser dividida em três períodos de tempo. Devemos entender que antes, durante e depois da prática de meditação nossa mente é inseparável da mente de todos os seres. Enfim, não há diferença entre os estados de meditação formal e os estados mentais de lucidez da vida cotidiana.

Erroneamente muitos praticantes apenas mantém a aparência externa da prática no período que a sucede. Levantam e caminham em silêncio com o olho parado sem piscar, com uma cara “de praticante”. E assim fica óbvio que durante a prática de meditação eles também não estiveram em contato com todos os seres. Quando levantam e caminham, a prática parece resumir-se na experiência de não-contato com os seres. Esta seria a prática de um javali específico, mas não a verdadeira prática de meditação.

O quinto passo no nobre caminho é o antídoto efetivo para os dois problemas citados no princípio: dificuldades econômicas, a inadaptação que muitos praticantes sentem com relação à vida cotidiana e a conseqüente agitação durante a meditação.

Essa experiência também é simbolizada pela expressão “abandonar corpo e mente”. Com isso queremos dizer que abandonamos todo o auto-interesse. Esta é a grande morte, a morte do javali, o renascimento da liberdade. Ainda assim essas expressões seguem como desafios, como koans. No quinto passo no nobre caminho podemos tentar penetrar nessa prática.

Considero algo extremamente revelador podermos nos associar energeticamente com os outros seres, ter uma experiência de brilho, não apenas motivados por um auto-interesse, mas motivados por uma ação mental que é mais ampla e inclui a compreensão da situação dos outros no próprio contexto em que se encontram. Talvez a palavra “compreensão” não seja muito exata. Se existe alguém que compreende algo, ainda existe um objeto da mente. Me refiro de fato à circunstância na qual a pessoa faz sua mente operar sob as condições a que outro ser está submetido. A pessoa desenvolve um fluxo mental e energético, e consequentemente um fluxo de emoções, na inseparatividade com o outro.


Compaixão

Isto pode parecer muito complicado, mas esta capacidade todos temos. Um exemplo é o que acontece quando vamos ao cinema. Ainda que os personagens sejam fictícios, muitas vezes operamos nossa mente sob as condições que esses personagens aparentemente operam. Assim nossa mente produz emoções e pensamentos ligados a circunstâncias que não são nossas, mas de entidades virtuais que povoam a tela do cinema. Quando observamos de forma mais profunda, vemos que a nossa natureza, a natureza luminosa, criativa, de energia, é exatamente a que produz a aparência da realidade e inclusive a identidade que vive sob essa realidade aparente. Isso ao mesmo tempo que demonstra a energia de nossa mente, espelha também sua liberdade de sua manifestação. Quando essa energia e essa liberdade de manifestação se colocam sob as condições de um outro ser, a compaixão pode de fato surgir.

A compaixão se traduz como o interesse do praticante em que o outro ser se liberte das circunstâncias aflitivas sob as quais está operando. De uma forma mais completa, essa dimensão da compaixão deveria incluir ainda a experiência clara de que o sofrimento que o outro manifesta é completamente desnecessário, que surge por causas, e que essas causas podem ser removidas.

Como o sofrimento surge por causas, a remoção dessas causas é essencialmente voltar a reconhecer a natureza ilimitada como a identidade básica de todos os seres. Devemos observar ainda que este reconhecimento, esta forma de descrever a compaixão, pode ser intencionalmente praticada. Podemos fazer isso tanto na vida cotidiana quanto na prática formal.

Suponhamos que nossa atividade é a de um médico ou advogado. Quando recebemos um cliente podemos desenvolver essa compreensão profunda da dificuldade que o outro está vivendo, e a compreensão profunda de que ela não é necessária. E assim pode ser que em nossa mente brote um interesse genuíno, um impulso de ação para remover a dificuldade que o outro está vivendo. Por outro lado pode ocorrer que nossa ação seja motivada por um auto-interesse, podemos estar agindo por orgulho, por inveja, por desejo e apego, ou dominados por uma espécie de cansaço ou preguiça, ou dominados por uma sensação de aflição ou carência, ou ainda por raiva, aversão, medo. Um praticante consegue distinguir perfeitamente se está atuando a partir destas seis emoções perturbadoras, ou se está atuando efetivamente para benefício de outro ser, além da motivação de auto-interesse.

Um bom praticante nessa etapa reconhece perfeitamente a transição de uma operação mental em direção a outra mais abrangente e livre. Sendo um praticante de muita qualidade, ele vai reconhecer também tanto a fixação em si mesmo como a própria compaixão, ambas como ações livres da própria mente original. Assim ele também transcenderá a noção de culpa, ou de falha.


Amor

Após a compaixão temos a segunda das dez etapas do quinto passo. Essa qualidade é traduzida como "amor". Sem reconhecer a liberdade natural da nossa mente com respeito à nossa própria identidade, podemos eventualmente olhar para um outro ser a partir do auto-interesse, e dessa forma brotam as seis emoções perturbadoras. Destas surgem os impulsos de atração, aversão ou indiferença. Mas podemos de fato olhar os outros seres e, em lugar de observá-los como objetos de ganho ou perda, ameaça ou proteção, podemos reconhecer suas qualidades inerentes, suas qualidades latentes ainda não manifestas. Podemos focar suas qualidades naturais que podem levá-los à felicidade e à liberdade, que podem se manifestar como suas próprias habilidades de trazer benefício a outros seres. Quando há este reconhecimento das qualidades no outro, e temos o impulso de trabalhar para que estas qualidades aflorem, a este impulso chamamos “amor”.


Alegria, equanimidade, seis paramitas e vacuidade

Havendo amor e compaixão, nós naturalmente manifestamos a terceira qualidade do quinto passo, que é alegria. Essa não é uma alegria comum, é uma alegria que se manifesta como uma energia interna incessantemente fluindo na inseparatividade com os outros seres, na dependência das qualidades de compaixão e amor.

Havendo a qualidade dessa energia incessante, surge a quarta qualidade do quinto passo, que é equanimidade. Quando ela surge, isso é sinônimo de estabilidade, é o fim da crise existencial. E a pessoa nesse momento sabe como manifestar sua energia vital da melhor forma durante sua vida. A pessoa que pratica essas quatro qualidades já apresenta uma serenidade natural que lhe permite a prática da sexta etapa do nobre caminho, ou seja, a meditação formal.

As seis qualidades seguintes são os seis paramitas. Sendo o primeiro generosidade, o segundo moralidade, o terceiro paciência propriamente dita, o quarto energia constante, o quinto concentração, e o sexto sabedoria. Essas seis qualidades são transcendentes, ou seja, são qualidades que, à semelhança das quatro anteriores, se manifestam pela capacidade natural da nossa mente em operar sob as condições a que outros seres estão submetidos, ou seja, a capacidade natural da mente de não estar presa a identidades.

Essa qualidade da mente de não estar presa a identidades, de se manifestar livremente no espaço e no tempo, além de nome e forma, espelha a natureza básica da vacuidade e luminosidade. Assim, a compaixão é a própria prática da liberdade original, a prática da mente naturalmente liberta, nesse caso manifestando-se através do interesse pelos outros seres. Assim compreendemos como a compaixão é completamente inseparável da vacuidade. Não houvesse a vacuidade, nossa natureza estaria presa a nossa identidade e a estados mentais particulares. A liberdade original natural sendo a própria expressão da vacuidade é o que permite a manifestação da compaixão. A mobilidade natural da mente espelha essa liberdade original, e assim as dez qualidades do quinto passo são possíveis. Se as dez qualidades do quinto passo são praticadas, cumprimos o pré-requisito natural para a prática da concentração da mente. Tendo abandonado corpo e mente, estamos sentados junto com todos os seres. E não há diferença entre antes, durante e depois da meditação formal.