Vida de Meditante: Superando Obstáculos - Parte III

Por: Lama Padma Samten

A questão material da vida do praticante

Surgem dificuldades para os praticantes quando eles aumentam a intensidade da prática. Pensam que vão morrer de fome ou terminar na miséria e privação extrema... Aparentemente há uma competição entre a vida espiritual e a vida no mundo, um conflito básico entre a dedicação espiritual e o processo convencional da própria vida. Através de hábitos arraigados pensamos que a vida espiritual deva ser completamente diferente do processo de relação com os outros seres e do próprio processo econômico. Este tipo de ansiedade pode trazer dificuldades tanto para indivíduos como para os grupos. Para analisar este aspecto, começarei lembrando a forma como o próprio Buda vivia. Às vezes sou convidado por empresários para algum encontro. Geralmente começo falando da forma de vida do Buda e digo: observem o budismo, está ativo há vinte e seis séculos, nenhuma empresa jamais durou tanto tempo... Sustentando o Budismo não há bancos, empresas, nenhum tipo de organização piramidal, mas ainda assim este movimento se mantém puro, fiel e útil geração após geração. Por que?

Isso ocorre devido à pureza de seus ensinamentos e a sua unidade de propósitos. Existem outras tradições em que os professores espirituais são apoiados pela instituição, recebem até mesmo aposentadoria, como em qualquer outra profissão. No budismo não é assim, pelo contrário, em geral os professores é que ajudam as instituições a se estabelecerem e se sustentarem. Como isso é possível?

Quando o Buda atingiu a iluminação, demorou muito para voltar a visitar seus pais. Seu pai enviou muitos emissários para visitá-lo, com o propósito de lhe convidarem para uma visita. Após muitas tentativas, Buda concordou em retornar. O palácio foi avisado e prepararam uma grande festa para o príncipe, mas ele chegou a pé, enrolado num manto. "Meu filho, como você chega aqui assim nesse estado?", diz o rei.

Pela manhã seguinte Buda vai mendigar sua comida na cidade. “Você é um príncipe, filho do rei! Como pode sair assim para mendigar na cidade?” Desesperou-se seu pai - uma grande desgraça na família. Mas Buda respondeu: “Se eu não mendigar, a sanga desaparecerá”. Esse é um ponto muito importante que devemos realmente entender. A mendicância do Buda curiosamente não é um processo no qual ele esteja pedindo alguma coisa. Quando o Buda mendiga ele está na verdade é oferecendo uma espécie de benefício para as pessoas. Uma das regras desse processo, por exemplo, é de que os mendicantes nunca devem fazer distinção entre os ricos e os pobres. Aliás considera-se quando os pobres efetivamente manifestam generosidade, seu mérito é mesmo maior do que quando pessoas de recursos doam a comida.

Quando o Buda chega na frente de alguém oferecendo a tigela, a própria presença do Buda inspira o coração do outro através de sua dignidade. É como se voltássemos ao momento em que o próprio Buda fez seus votos de bodisatva para Buda Dipankara. Ele oferece aos seres a mesma oportunidade que Buda Dipankara lhe ofereceu. Após a generosidade ao Buda Dipankara, durante incontáveis vidas, com a mesma experiência no coração, ele produziu benefícios incessantes aos seres até atingir a iluminação completa e final na forma de Buda Sakiamuni.

Quando Buda oferece a tigela, sua mera presença retira as pessoas dos reinos de sofrimento em que estão imersas. As pessoas imersas no reino dos demônios famintos, por exemplo, são imediatamente deslocadas para um reino superior ou para a liberação. No momento em que o Buda surge, os corações dos demônios famintos se abrem, e eles se tornam generosos. Sendo generosos não permanecem naquele reino específico, um universo virtual de seres carentes. No momento em que alegra pelo benefício que traz ao outro, o ser "carente" descobre-se capaz da generosidade, sai das fixações que o prendem naquele mundo. Saem diretamente da roda da vida para um estado de terra pura, isso acontece em um instante mágico e transformador.

Quando vemos os mestres que sucederam o Buda, vemos que geração após geração os mestres seguiram este conselho. Ainda hoje encontramos tradições que mantém os preceitos de mendicância e praticam da mesma forma. Mas mesmo naqueles que não mendigam diretamente, vamos encontrar a mesma postura. Os praticantes simplesmente focam incessantemente como trazer benefícios aos outros. A essência do processo de sustentação da sanga está apenas neste processo extraordinário de trazer benefícios aos outros.

Ainda assim pode ocorrer que durante o caminho espiritual obstáculos nos levem numa direção oposta. A fixação no processo da meditação, uma fixação que se traduz pela insensibilidade aos outros seres, cria a impossibilidade de inserção positiva ou compassiva no mundo, visto como perturbador e sem sentido.

Quando os praticantes sentam para praticar meditação encontram os dois tipos de problemas que estou abordando. Podem gerar agitação mental, de forma que nenhum benefício é possível, e essa agitação está ligada especificamente a uma falha com relação aos quatro primeiros passos do nobre caminho. Essa pessoa, como já examinei, motivada por elementos da roda da vida e dominada pelos três animais, gera carma e não gera méritos. Ele ainda acredita que sua felicidade pode ser obtida de fontes externas, e no fim permanece como um equilibrista das muitas fontes de satisfação, não que finalmente não as usufrui, mas terá raivas periódicas, uma ansiedade permanente, buscando se manter numa direção aparentemente favorável. A solução, como examinei, é retomar o correto propósito e naturalmente baseado nisso evitar as dez não-virtudes, cumprindo os quatro primeiros passos do Nobre Caminho de Oito Passos do Buda Sakiamuni.

O quinto passo é a moralidade baseada em uma fé natural. Quando a pessoa se move para benefício dos outros seres, ela tranqüiliza sua mente e isto potencializa as qualidades que levam à meditação, que é o sexto passo.

Suponhamos que quando a pessoa começa a meditar, pelo mérito gerado através de práticas em vidas anteriores, ela realmente consiga se concentrar. Se não foi por estes méritos, seu progresso pode ter vindo de um duríssimo treinamento nessa vida e, assim, focando suas próprias intranqüilidades através dos meses e anos e desenvolvido a prática de bondade, tenha ficado progressivamente mais silenciosa e mais estável.

A dificuldade neste ponto é o materialismo espiritual. A pessoa praticando em silêncio, isolada, pode gerar uma outra classe de auto-interesse, um auto-interesse sutil, também ligada à roda da vida, uma fixação em estados mentais particulares de felicidade interna. Dizemos que isto é uma ligação à Roda da Vida através do reino dos deuses.

Existem muitas diferentes condições de meditação onde a pessoa desenvolve uma estabilidade que se manifesta como uma insensibilidade ao que acontece ao redor. A pessoa ao olhar para dentro de si mesma sente que consegue efetivamente alcançar o que os mestres descrevem, porém de fato a pessoa se torna mais insensível, menos conectada, menos apta para trazer benefício aos outros.

Por outro lado, quando os bodisatvas praticam, eles praticam — como o Buda praticava — inseparáveis de todos os seres. Eles não sentam sozinhos, mas reconhecem suas próprias dificuldades juntamente com as dificuldades de todos os seres. Reconhecem que muito poucos meditam. Reconhecem que a maioria das pessoas procura a saída onde ela não pode ser encontrada. Eles sentam e sua forma de prática pode efetivamente trazer benefício para os outros. Com essa motivação eles percebem que se eles não praticassem, não desenvolveriam habilidades para ajudar — portanto eles sentam com essa motivação e sua meditação é uma manifestação de generosidade. Da mesma forma, se entram em retiro, entram em retiro para produzir beneficio para os seres. Não é um “adeus mundo cruel”, não é um impulso de isolamento, a ida para o retiro representa o reconhecimento de que a prática direta da sabedoria mais sutil produz genuínos benefícios aos outros seres.

É imprescindível que o caminho do meditante tenha esta característica, que seja efetivamente o caminho do bodisatva, o Caminho do Meio. Isto realmente significa a própria inseparatividade de todas as coisas e seres, e um interesse efetivo de trazer benefícios a todos.

É nesse sentido que Sua Santidade o Dalai Lama reconecta nossa prática diária e nossa vida cotidiana, com o caminho espiritual. Ele diz “todos os seres desejam a felicidade e buscam afastar-se do sofrimento”. Assim nossa missão é essencialmente ajudar os seres nesse sentido. Esta é a motivação de um bodisatva, sua energia não está presa à sua própria identidade.

Os animais são considerados inferiores aos humanos, mas muitas vezes carregam comida na boca para alimentar outros animais. É uma atividade extremamente sofisticada, é a mente ultrapassando o próprio auto-interesse e trabalhando para levar benefício para os outros. Mesmo um pequeno pássaro tem uma sabedoria tão surpreendente. Ele poderia simplesmente comer, mas cuidadosamente pega o alimento com o bico para atender pequeninos seres irados que estão esperando famintos no ninho. Ou outro caso surpreendente que vi é o de uma porca amamentando filhotes de tigre...

É um processo surpreendente utilizado para aumentar a sobrevivência de filhotes de tigres em cativeiro. As mães tigresas são ansiosas no cativeiro e têm dificuldade de amamentar seus filhotes. Isso me parece uma enorme generosidade, compaixão no sentido verdadeiro. Os seres humanos também agem assim, com relação aos filhos e a outros seres.

Esquecidos da compaixão temos nossos próprios afazeres urgentes e prioridades inadiáveis. Assim o tempo passa. Quando os ciclos da vida se completam, tudo desaba, tudo perde o sentido e o que fica de bom tem um único sabor: a generosidade, o amor e a compaixão que praticamos para com os outros seres. Aquilo que fizemos auto-centradamente acaba realmente. O que fizemos carinhosamente, mesmo que, no plano material pareça não mais existir, curiosamente porque fizemos para um outro, segue presente em uma dimensão de satisfação sutil. É uma satisfação que não morre, é uma satisfação transcendente. Essa palavra “transcendência” é muito correta. Essas ações ultrapassaram nossa identidade, nossa energia realmente não está presa em nós mesmos, é naturalmente transcendente. Não há esforço nisso.

Dito de forma mais futebolística, se eu torcer pelo time de “eu sozinho”, minha chance é mínima. Que chance temos ao "torcer" por nós mesmos? Imagine que coloquemos nossa estabilidade em nossas vitórias pessoais: nossa chance é mínima. Mas por outro lado, nossa natureza não está presa a nossos auto-interesses. Nossa natureza é naturalmente ampla.

Esse é o fato: quando manifestamos essa natureza ampla, estamos fazendo exatamente o que o Buda fez durante as quatro décadas finais de sua vida. Ele apenas se dedicou incessantemente a produzir benefícios para os seres. À medida que isso ocorria, o Buda nunca precisou ter um palácio, nem uma simples cozinha ele tinha. Ele nunca precisou de proteção militar. Ele apenas organizou a vida da sanga de forma muito simples, e os seres ao redor ficavam felizes em poder ajudar. Assim vimos os vários reis protegendo o Buda, oferecendo instalações, prédios, palácios, jardins, onde o Buda deu seus ensinamentos.

Por outro lado, curiosamente, durante seu desenvolvimento posterior, aparentemente o budismo se solidificou. Manifestou-se através de muitos prédios, mosteiros imensos. Especialmente o Mosteiro de Nalanda, na Índia, onde por algum tempo chegou a haver 10.000 pessoas mantendo o Darma vivo através de práticas e estudos. Porém, exatamente porque se estruturou dessa maneira, ele pode ser atacado e foi extinto na Índia. É paradoxal. A estrutura produz vulnerabilidade.

Quando algo se estrutura assim, se torna sólido e está sujeito ao desgaste e a ataques. Com dor no coração contemplamos o relato dos últimos momentos da grande e sagrada Universidade de Nalanda na Índia, atacada militarmente que foi. Mais de uma vez ela foi destruída, mas ressurgia de alguma outra forma, até que finalmente desapareceu.

A Stupa de Bodhigaya é outro exemplo, na impossibilidade de ser destruída pelos atacantes, foi coberta de lixo. Como havia um prédio, esse prédio poderia ser atacado, profanado, é o Darma expresso no espaço e tempo. Ainda assim, a compreensão mais profunda, aquilo que realmente traz benefício, o Darma genuíno, este nunca morreu. Este é o verdadeiro ponto de solidez do budismo, instalado na fortaleza do coração.

O Darma no Tibete é outro exemplo. Observando os acontecimentos vemos que o vento da impermanência soprou forte, e o que aconteceu? As sementes emplumadas voaram. Se elas têm qualidades, florescem. O terreno fértil é onde há dor, confusão, matéria podre. Da própria dor surge a sustentação da árvore da cura. É um processo extraordinário onde confusão, destruição e renascimento se misturam, não conseguimos distinguir o que é bom ou mal. A impermanência destrói, porque destrói propaga as sementes do Darma sagrado. De fato vemos que as boas sementes vingaram, mas aquelas que não tinham capacidade não vingaram.

Enfim, se examinamos os praticantes que sentam buscando meramente estabilidade, vamos perceber que esses praticantes geram uma insensibilidade com relação aos outros seres. É uma simples fixação em estados mentais externos. Na exata medida dos poucos méritos que eles proporcionam para os outros, eles recebem seu retorno, e devido a isto eles imaginam que o mundo não é generoso, que não reconhece os grandes praticantes que eles imaginam ser. Não entendem porque algumas manifestações do Darma prosperam e outras não. Se nós copiarmos a forma do Buda, vamos adiante. Essa é uma receita comprovada há vinte e seis séculos.

Sua Santidade o Dalai Lama tem uma qualidade extraordinária, porque ele traduz essa receita do Buda de acordo com as capacidades das pessoas, o que aliás era o que o próprio Buda fazia. Então vamos perceber pessoas que têm capacidade de ajudar os outros oferecendo coisas impermanentes, mas que os outros sentem como necessárias. Um amigo, por exemplo, pode ajudar inclusive oferecendo algo que talvez não seja muito apropriado. No entanto, a outra pessoa imagina que aquilo é bom e aceita, dessa forma surge mérito. Os pais, por outro lado, já olham de uma forma mais ampla, eles buscam produzir benefícios mais permanentes, mais verdadeiros.

Freqüentemente, são os próprios pais e mães que ensinam a língua para uma pessoa. Ela vai usar aquele idioma até o fim de seus dias, e vai aprender uma série de atitudes que vão ser úteis durante toda sua vida. Porém, muitas vezes eles não conseguem produzir grandes transições na vida dos filhos. Então há outros seres que dispõem de poder, capacidade, que convidam as pessoas e proporcionam processos de forma que ela salte patamares. Enfim encontramos seres que ajudam de uma forma ainda mais poderosa, os professores espirituais. Eles oferecem ensinamentos que não se dissolvem nem mesmo no processo da morte. Eles criam benefícios que se eternalizam e permanecem verdadeiros mesmo para outras vidas. Quando olhamos essas diversas formas de benefícios, percebemos que nossa própria atividade de beneficiar os outros seres deve estar incluída em alguma dessas formas mais ou menos amplas.

Por outro lado, sempre que trazemos benefícios de alguma maneira, o universo retribui. Imagine você na calçada esmolando com uma latinha. Hoje em dia talvez o processo seja mais direto “me dá um real” é o que ouvimos..., mas imagine algum tempo no passado. Nós com este rosto que temos, não iríamos ficar nem meio dia parados ali. Logo vai passar alguém e ver que estamos no lugar errado. Chega alguém e, se começamos a falar, essa pessoa já diz “que tal você dar umas aulas para aquelas crianças ali?” Talvez você acabe tendo que contar sua vida, e vai ser desmascarado. Por outro lado se você vê uma pessoa do seu lado que está na mesma situação, você logo terá o impulso de socorrê-la, você certamente não conseguirá ficar parado frente ao sofrimento verdadeiro do outro. É por isso que você nunca vai para a calçada.

Não temos este carma de ficar como pobres coitados incapazes de se conectar com os outros seres. Na medida que não temos esse carma, isso não vai acontecer conosco. Como temos a capacidade de nos interessar pelos outros, nossa vida segue. Por outro lado um meditante equivocado pode imaginar que o melhor benefício é ficar parado e insensível ao mundo ao redor. Ele pensa que tudo está perdido, que tudo que ele tem para fazer é adotar essa posição e esquecer os seres. Qualquer pessoa que surge na frente, qualquer coisa do mundo, parece uma perturbação.

Sua experiência interna é que quando está parado e consegue manter o isolamento, sente-se bem, quando ele se conecta com os outros, tudo anda mal. Assim ele pensa que sua prática é o isolamento. Por outro lado se compreendemos o caminho do bodisatva, reconhecemos que tudo que fazemos, seja prática espiritual, conversar, interagir, tudo isso, são formas de trazer beneficio. Nesse caso se surgem dificuldades, as falhas de motivação são a origem.