Entrevista com Bel Cesar sobre o Budismo e a Auto-Estima

Bel Cesar é psicóloga, formada em 1989. Desde então, pratica a psicoterapia sob a perspectiva do Budismo Tibetano e dedica-se ao acompanhamento daqueles que enfrentam a morte e também ao tratamento do estresse pós-traumático com o método de S.E.® - Somatic Experiencing. Organizou a primeira vinda de Lama Gangchen Rinpoche ao Brasil em 1987. Presidiu o Centro de Dharma da Paz por 15 anos. Em parceria com Peter Webb, desenvolve atividades de Ecopsicologia no Sítio Vida de Clara Luz. Possui sete livros publicados pela Editora Gaia. Entre eles, Morrer não se Improvisa, Livro das Emoções e o mais recente, em parceria com Lama Michel Rinpoche O Grande Amor - um objetivo de vida. Em setembro de 2018 irá lançar um novo livro: Câncer, quando a vida pede por um novo ajuste.

Existe o preconceito por parte de alguns budistas sobre desenvolvermos a auto-estima?

Não há um preconceito quanto a importância de amar a si mesmo. Ao contrário. Assim como explica Lama Michel Rinpoche: "Amar é desejar felicidade. Desejar a própria felicidade é amar a si mesmo. Não conseguimos desejar felicidade para alguém sem antes desejar essa mesma felicidade para nós. A felicidade que desejamos para o outro é um reflexo do que desejamos para nós. Se desejarmos equilíbrio e harmonia, vamos desejar que o outro encontre esse mesmo bem-estar. Se felicidade para nós é ter prazeres e poder, vamos amar o outro desejando o mesmo para ele. Em outras palavras, é ter clareza sobre o que nos faz bem e o que nos faz mal e determinação de abandonar o que nos faz mal e cultivar o que nos faz bem. Isso é amar a si mesmo. Se a clareza do que é felicidade, teremos dificuldade de entender o amor. Acredito que todo ser humano, por natureza, tem amor-próprio, pois ninguém deseja sofrer. A dificuldade está em saber como ser feliz.”

O problema está em confundir o conceito de ter auto-estima com uma atitude egocentrada, em ser egoísta - como costuma-se falar. Aquele que vê o mundo apenas a partir de suas necessidades e desejos, tem uma visão estreita da realidade. Ele interpreta a realidade apenas como um prolongamento do que precisa e deseja. Já uma pessoa que tem uma boa auto-estima, isto é, que é capaz de ter uma percepção ampla tanto de si como dos outros, tem princípios e valores que atendem tanto as suas necessidades pessoais como as coletivas. Não apenas de outras pessoas, mas de todos os seres vivos e do meio ambiente.

As diversas tradições espirituais nos ensinam sobre a importância de abrirmos nossos corações para os outros e abandonarmos nossa atitude comumente egocentrada. Neste sentido, não está nos dizendo para colocarmo-nos em segundo plano, negando nosso mundo interior, mas sim, nos estimulando a ter uma postura de reconhecer tanto a si quanto aos outros.

A auto-estima faz parte do autoconhecimento?

Buda alegria felicidadeSim! Aquele que vive a partir de uma atitude ego centrada não tem uma percepção clara de si mesmo porque está o tempo todo controlando os outros e seu meio ambiente para atender suas necessidades físicas e emocionais. Para se sentir seguro e garantido, ele busca constante aprovação do meio ambiente.

O psicanalista Ivan Capelatto diz que quem tem autoestima vive de acordo com a sua ética interna. O que gera a confiança e a valorização de si mesmo é a ética interna e não a estética, a imagem que aparentamos.

O caminho espiritual nos estimula a cultivar o autoconhecimento ao passo que nos incentiva a reconhecermos e cultivarmos valores como generosidade, paciência, esforço entusiástico, sabedoria - um compromisso com o bem estar interior tanto próprio como alheio.

A auto-estima é importante? Ela nos deixa mais equilibrados? Traz felicidade?

A auto-estima gera um sentimento de segurança e paz interior porque está sustentando numa realidade interior autêntica e não imaginária ou idealizada sobre si mesmo. Ela baseia-se na capacidade de aceitar tanto nossos limites quanto nossas necessidades. Reconhecer nossos limites nos protege de auto-agressões, expondo-nos a situações que estão além de nossas condições. Aceitar nossas necessidades ajuda-nos a identificar nossas prioridades. Uma vez que sabemos reconhecê-las, podemos fazer escolhas conscientes.

Uma pessoa com baixa auto-estima sente que não merece nada, ou que só merece sob certas condições. Ela sente que não é tão importante quanto os outros, e por isso as prioridades dos outros são mais importantes que as suas.

Auto-estima é o julgamento que a pessoa faz de si mesma, indicando o quanto ela se acredita capaz, significativa, bem-sucedida e merecedora. Quanto maior for o número de escolhas e decisões conscientes que precisamos tomar, mais urgente será a necessidade de desenvolver uma boa auto-estima. Quanto mais baixa for nossa auto-estima, menor será nossa coragem de arriscar e, conseqüentemente, menos iremos nos realizar.

Arriscar-se requer desprendimento das expectativas e confiança em si mesmo. Se quando éramos crianças, nos sentimos traídos pelos nossos próprios pais repetidas vezes, seja porque não cumpriram suas promessas, seja porque literalmente nos abandonaram, não adquirimos familiaridade com o sentimento de confiança. Portanto, teremos que desenvolvê-lo agora como adultos. Nunca é tarde demais!

Fazer isso envolve uma constante dedicação e esforço em dar a si uma nova chance de abrir-se para o outro. A coragem para apostar em nós mesmos envolve a capacidade de confiar em nossa habilidade de escolher pessoas dignas de nossa confiança.

Portanto, para curar nossas emoções baseadas numa baixa auto-estima, é preciso abandonar uma postura retraída e defensiva e correr o risco de dar um voto de confiança a si mesmo ao confiar em alguém!

Precisamos cultivar a confiança em nosso direito de ser feliz, na sensação de que temos valor, de que somos merecedores, de que temos direito de expressar tanto nossas necessidades quanto nossos desejos e de desfrutar dos resultados de nossos esforços. Em outras palavras, temos o direito de sermos bem tratados!

Existe algum ou alguns ensinamentos budistas sobre a auto-estima?

Existem muitos ensinamentos sobre a importância de amar a si mesmo assim como nos mostra que enquanto nos interessarmos apenas por nós mesmos, nada acontece e os nossos problemas sempre parecerão intransponíveis. Contaminada pela avareza, a mente egocentrada está continuamente preocupada com a idéia do Eu, e torna-se, assim, tensa e angustiada.

Nas rezas da prática de meditação Autocura Tântrica NgelSo elaboradas por Lama Gangchen Rinpoche, recitamos: “Por favor, corte a minha atitude Egocêntrica e abençoe-me para que eu desenvolva a Bodhichitta pura”.

Os Bodhisattvas (Bodhi: iluminação; Sattva: ser) dedicam suas vidas a atingir a Iluminação com o propósito de beneficiar a todos os seres, ou seja, a felicidade alheia está incluída em seu processo de evolução. Eles não visam apenas o bem-estar pessoal, pois compreenderam que a atitude mental egocentrada impede de manter a mente estável e livre de estados mentais negativos. Buscam, assim, desenvolver a Bodhichitta (Bodhi: iluminação; chitta: mente): um estado mental conhecido como “mente de Iluminação” ou seja, um estado mental que favorece a Iluminação. Esta é uma atitude que requer sabedoria, uma mente clara e também aberta.

Os Budas tem auto-estima?

Os Buddhas são arquétipos de uma mente iluminada. Os Lamas que eu conheço todos tem uma excelente auto-estima: eles levem uma vida com significado.

Algum Lama já falou sobre auto-estima?

Todos lamas ressaltam em seus ensinamentos a importância de aprendermos a amar a nós mesmos como base para amar os outros e todos os seres, assim como o meio ambiente. Guelek Rinpoche disse, durante um workshop sobre o Amor e Compaixão: “Vocês têm que reconhecer que há dentro de vocês uma natureza humana bela, boa. Quando nós nos tornamos seres iluminados é a bela natureza dos seres humanos existente em cada um de nós que torna-se iluminada. Nada está vindo de fora para atingi-lo, isto não ocorre, é de dentro de cada indivíduo. Este indivíduo torna-se capaz de brilhar e funcionar bem. A iluminação realmente acontece desta forma. Vocês não precisam olhar para a pessoa à direita ou esquerda, está dentro de vocês. E isto é o problema, pois vocês se recusam a ter o conhecimento sobre vocês mesmos. Vocês não apenas recusam o conhecimento como também o negam. Não apenas o negam como dizem para si mesmos: `Eu sou uma má pessoa´. Como vocês podem fazer isso com vocês mesmos? Não é muito duro? É. Alguns de nós somos muito duros conosco mesmos, nos subestimamos muito. Agora é hora de olhar para outra direção e reconhecer a beleza da natureza humana e as boas qualidades dentro de nós mesmos. Reconhecer nossa compaixão e começar a cuidar de nós mesmos. Uma vez que desenvolvemos amor próprio, então começaremos a desenvolver amor para com os outros”.

Auto-amor é vaidade ou orgulho?

Chögyam Trungpa dizia que para amar a si mesmo é preciso sentir-se útil tanto para si quanto para os outros. Para tanto, necessitamos ter orgulho e bem-estar, de ser quem se é e ter a confiança de está ligado a milhares de pessoas que sentem a mesma coisa: o prazer de ser um guerreiro de Shambala – um guerreiro da Paz.

Aquele que é egocentrado compara-se com os outros para saber mais sobre si mesmo. Neste sentido a vaidade e o orgulho tornar-se motivo de angústia constante. Já a auto-estima, quanto a capacidade de cultivar amor por si mesmo para ser capaz de amar os outros, é capaz de sentir-se orgulhosa de suas habilidades. No budismo há o que se chama de orgulho divino. Trata-se de um estado mental cultivado durante a meditação no qual nos observamos como uma divindade. Não pense que está apenas fingindo; você deve estar convencido. Lama Yeshe ressalta em seu livro Introdução ao Tantra (Ed. Gaia): “ O estágio de treinamento da geração do orgulho divino de uma divindade é muito importante. Nossa tendência normal consiste em sentirmo-nos insatisfeitos e criticarmos nosso corpo, fala e mente. 'Meu corpo está fora de forma; minha voz é desagradável; minha mente está confusa'. Ficamos tão habituados a essa prática inútil e neurótica da crítica que nos maltratamos e aos outros. Do ponto de vista tântrico, isso é extremamente nocivo. Para evitar essa tendência é preciso cultivar a noção do orgulho divino, a forte sensação que surge quando entramos na experiência de nirmanakaya, por exemplo – na qual você sente a mente livre de todas as superstições ou limitações. Do contrário, se você se mantiver apegado à idéia de que está basicamente confuso e irado, você se manifestará como uma pessoa confusa e irada, e certamente não como uma divindade sublime. Você pode impedir esse modo destrutivo de pensar a seu respeito e evitar suas conseqüências negativas e daninhas concentrando-se na unidade de sua própria consciência fundamental e nas qualidades sábias e compassivas da divindade-guru. Desse modo, você se abre para as grandes ondas de inspiração que podem transformar completamente a sua vida. Quanto mais você se concentrar nessa sensação de orgulho divino, mais você irá experimentar a libertação de todas as formas de limitação e insatisfação".

É possível dizer que se valorizar e gostar de si mesmo podem ser atitudes desapegadas?

O que você refere-se a atitudes desapegadas? A não buscar por reconhecimento e elogios?

A auto-estima e confiança aumentam em proporção ao quanto quando somos reconhecidos, refletidos pelos outros, principalmente quando éramos crianças. Nos fechamos quando não somos vistos. Não há nada de errado em querer ser visto e reconhecido pelos outros. Reconhecer e ser reconhecido faz parte da dinâmica dos relacionamentos sadios. Quando reconhecemos algo ou alguém, ativamos seu poder latente.

O reconhecimento faz crescer o que temos de melhor para oferecer. Se estamos num ambiente ou entre pessoas que não tem o hábito de reconhecer e elogiar nossas atitudes, devemos ir em busca daquelas que sabem nos colocam para cima. Estar perto de pessoas que tem o hábito de nos criticar, e nos colocar “para baixo”, pode ser muito toxico para a autoestima.

Você pode citar algumas vantagens psicológicas sobre auto-valorização?

A sensação de inteireza surge quando paramos de lutar contra nós mesmos. Nos tornamos menos vulneráveis às frustrações e mais afetivos nos relacionamentos.

A auto-estima nos torna mais fortes para desenvolvermos o autoconhecimento?

Sim! A autopercepção é um pré-requisito para a empatia e a compaixão: é preciso sermos sensíveis às nossas nuanças emocionais ao entrarmos em contato com o outro. “Sem a capacidade de captar nossos próprios sentimentos, ou impedir que eles se apossem de nós, ficaremos irremediavelmente desconectados dos estados de ânimo das outras pessoas. A empatia é o nosso radar social”, escreve Daniel Goleman em seu livro Trabalhando com a inteligência emocional. “[...] A empatia requer, no mínimo, ser capaz de ler as emoções de outra pessoa. Num nível mais elevado, implica aperceber-se e reagir às preocupações e sentimentos não-verbalizados de alguém. No nível mais alto, ter empatia é compreender as questões e as preocupações que ficam por detrás dos sentimentos de alguém”. O mesmo temos que saber fazer com nossos próprios sentimentos.

Abrir-se para o outro é, portanto, um exercício que envolve o autoconhecimento. “O autoconhecimento é inseparável do conhecimento dos outros. Da mesma forma, o amor por si é inseparável do amor pelos outros”.[...] “Desperta-te no olhar dos outros. Eles também são tua fonte”.

Você tem algumas dicas para conseguirmos nos valorizarmos mais?

Em primeiro lugar precisamos reconhecer o quanto nos colocamos para baixo com críticas excessivas, regras e obrigações inflexíveis, perfeccionismo e falta de assertividade ao expressar nossa raiva e frustração. Numa sociedade capitalista onde a concorrência é um desafio diário, muitas vezes nos comparamos por baixo, ao invés de focar em nossos recursos e habilidades.

Quanto maior a capacidade de empatia consigo mesmo maior será a nossa empatia pelos outros. É preciso acolher os tantos os sentimentos desagradáveis como os agradáveis para criar ordem no espaço interior. Não precisamos não ter medo de olhar nossas dificuldades, mas precisamos cultivar nossos recursos para transformá-las!

Lama Gangchen Rinpoche nos fala algo muito interessante: “Não olhe para o lado da sombra, mas para a realidade. Uma mente cientista analisa a realidade e não gera dúvidas.” Olhar para a sombra nos leva a ter uma visão imediata, o que produz um efeito limitador sobre nossos recursos. Ao passo que olhar para a realidade significa cultivar um pensamento analítico capaz de reconhecer os vários pontos envolvidos numa determinada situação: suas causas, condições e efeitos.

Se mantivermos disponibilidade de explorar a nós mesmos, não nos tornaremos artificiais nem arrogantes. Uma atitude arrogante revela uma paralisia sobre a capacidade de conhecer a si mesmo. A arrogância surge como uma armadura protetora, isto é, um mecanismo de defesa para não se sentir ameaçado frente às adversidades externas. Quanto mais tememos fora, mais tememos dentro. Cabe ressaltar que não importa o quanto sabemos sobre nós mesmo, mas sim como nos comportamos frente aquilo que sabemos.

O primeiro passo para cultivar a auto-estima é reconhecer a presença de uma mente satisfeita como forma de gerar espaço interior, autoaceitação e autossustentação. Lama Gangchen Rinpoche nos fala: "“Nosso problema é que não sabemos reconhecer a positividade. Primeiro, é preciso reconhecer a paz interna, para depois desenvolvê-la, senão a perderemos novamente.”

Ter a mente tensa é como ter as mãos tensas: você não consegue tocar em nada. Portanto, precisamos decidir não cultivar uma mente estúpida, programando-nos com muita precisão. É tudo uma questão de não seguir emoções negativas, aceitando a paz e seguindo-a. Quando estamos em paz, tudo começa a vir automaticamente de maneira positiva".

Segundo passo: ampliar a visão que temos sobre nosso próprio sofrimento. Lama Gangchen Rinpoche sempre nos ressalta a importância de não lutarmos contra o sofrimento, mas sim de nos aproximarmos dele, com curiosidade e empatia. Não somos condenados a sofrer para sempre. Mas, para deixar de sofrer não podemos fugir do sofrimento, temos que encarar suas causas e condiciones assim como acreditar em nosso potencial de transformação contínua. Ao lidar com o sofrimento de uma forma positiva, podemos fazer algumas mudanças positivas.

Terceiro passo: cultivar princípio e valores baseados no bem estar coletivo, como generosidade, honestidade, transparência e respeito. A clareza de intenções e auto valorização geradas pela harmonia interna são condições prioritárias para uma comunicação saudável com o outro. Ser flexível, realista e criativo nos ajuda a colocar em prática nossos valores com coerência. A alegria e a beleza também são valores importantes de ser lembrados!

Quarto passo: compreender e praticar a autorregulação - um equilíbrio dinâmico de abertura e relaxamento. Habilidade de transitar entre diferentes estados emocionais e psicofísicos, mantendo uma visão panorâmica do ambiente, assim como o engajamento social. Autorregulação ocorre a partir de nós, mas em ressonância com os outros e todo o ambiente. A partir de uma base confiante e amorosa, sem a necessidade de fugir ou atacar algo positivo pode ocorrer. Às vezes levamos anos cultivando uma nova base até ela poder se tornar realidade.

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