Por: Flávio Gikovate
Tenho insistido no fato de que
todos nós temos uma sensação de buraco, de que falta alguma coisa. Temos,
pois, um sentimento de inferioridade, que é universal. Ele está presente em
todas as pessoas, inclusive naquelas que se mostram autoconfiantes e orgulhosas
de si mesmas; são apenas criaturas mentirosas, além de competentes em artes cênicas.
Foi a constatação dessa sensação que levou o poeta a afirmar: "é
impossível ser feliz sozinho". Ou seja, a sensação da harmonia que
buscamos só poderá ser encontrada a dois, na união amorosa. Essa foi também
a posição que assumi nos últimos vinte anos. Defendi o amor romântico, a
aliança intensa e forte entre um homem e uma mulher, como o grande remédio
para o desamparo que nos acompanha. Ressaltei que a sensação de desamparo
vinha aumentando, pois, até algumas décadas atrás, o aconchego era resultado
da forte aliança que unia as famílias em clãs.
As grandes famílias rurais, cheias de filhos, sobrinhos e tios, crentes em Deus
e que, juntas com outras famílias, formavam comunidades onde todos se
conheciam, traziam grande atenuação para o desamparo. É claro que tudo tem um
preço. Nesses grupos não havia espaço para a individualidade, opiniões
divergentes ou excentricidades.
A vida nas grandes cidades é hoje bem mais livre e tolerante para com o exercício
de uma forma pessoal de ser. Por outro lado, a sensação de solidão cresceu
muito. Usamos essa palavra – de forte conotação negativa que provoca pavor só
de ser pronunciada – para definir a dor que deriva de nos sentirmos
incompletos. Acho que a solidão envolve também uma certa vergonha, como se a
pessoa sentisse menos competente para encontrar um parceiro. Poderia, porém,
ser diferente: talvez deveríamos ter orgulho da nossa capacidade de ficar sós,
coisa difícil e que nem todo mundo consegue.
O amor romântico apareceu como o grande neutralizador da solidão crescente,
que chegou com a industrialização e com a migração para os centros urbanos.
No passado, o casamento se realizava por meio de arranjos familiares; agora, é
fruto do amor, da escolha voluntária dos jovens, mais donos de suas vidas e
seus destinos. O amor apareceu – e foi louvado por todo mundo, inclusive por
mim – como o grande remédio para o nosso desamparo, como algo que nos permite
sentir a completitude e a harmonia perdidas, mas presentes em algum canto na
nossa memória.
Na prática, porém, as coisas não vêm se passando exatamente como prevíamos.
O conto de fadas, no qual embarcamos, tem esbarrado em vários obstáculos. O
maior deles deriva de uma tendência para o crescimento da nossa
individualidade. Continuamos sonhando com o amor, é verdade; mas estamos cada
vez menos dispostos a fazer concessões, a ceder às pressões do parceiro. O
desejo romântico quer o par sempre junto, ao passo que cada indivíduo pode
estar interessado em ir para uma direção diferente. Aí se trata uma inevitável
e cansativa luta pelo poder, na qual ninguém fica satisfeito.
É nesse ponto das reflexões que me fiz uma pergunta: somos mesmo incompletos
ou apenas nos sentimos assim? Confesso que fiquei meio atrapalhado, perturbado
mesmo, quando deparei com uma resposta óbvia, mas que jamais tinha me ocorrido.
A sensação de incompletitude não é obrigatoriamente a expressão de um fato.
O trauma do nascimento nos marca e provoca essa sensação. Mas somos indivíduos
inteiros e completos. Pensar assim poderá nos conduzir a uma fascinante
aventura. Vamos nos aprofundar um pouco nessa trilha nas próximas colunas.
Instituto de Psicoterapia em São Paulo: http://www.flaviogikovate.com.br/