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Por:
Letícia Capriotti
O CONCEITO DE
SINCRONICIDADE
A sincronicidade é um conceito empírico que surge para tentar dar conta daquilo
que foge à explicação causal. Jung diz que “a ligação entre os acontecimentos,
em determinadas circunstâncias, pode ser de natureza diferente da ligação causal
e exige um outro princípio de explicação” (CW VIII, par. 818). A física moderna
tornou relativa a validade das leis naturais e assim percebemos que a
causalidade é um princípio válido apenas estatisticamente e que não dá conta dos
fenômenos raros e aleatórios.
Ao longo de sua obra, Jung deu várias definições ao conceito de sincronicidade.
Aqui estão algumas delas:
> “... coincidência, no tempo, de dois ou vários eventos, sem relação causal mas
com o mesmo conteúdo significativo.” (CW VIII, par.849)
> “... a simultaneidade de um estado psíquico com um ou vários acontecimentos
que aparecem como paralelos significativos de um estado subjetivo momentâneo e,
em certas circunstâncias, também vice-versa.” (CW VIII, par. 850)
> “Um conteúdo inesperado, que está ligado direta ou indiretamente a um
acontecimento objetivo exterior, coincide com um estado psíquico ordinário.” (CW
VIII, par. 855)
> “...um só e o mesmo significado (transcendente) pode manifestar-se
simultaneamente na psique humana e na ordem de um acontecimento externo e
independente.” (CW VIII, par.905)
> “um caso especial de organização acausal geral.” (CW VIII, par.955)
> “coincidência significativa de dois ou mais acontecimentos, em que se trata de
algo mais do que uma probabilidade de acasos.” (CW VIII, par. 959)
> “uma peculiar interdependência de eventos objetivos entre si, assim como os
estados subjetivos (psíquicos) do observador ou observadores.” (I Ching, p.17)
> “o princípio da causalidade nos afirma que a conexão entre a causa e o efeito
é uma conexão necessária. O princípio da sincronicidade nos afirma que os termos
de uma coincidência significativa são ligados pela simultaneidade e pelo
significado”. (CW VIII, par. 906)
Jung define também três categorias de sincronicidade:
1. coincidência de um estado psíquico com um evento externo objetivo simultâneo.
2. coincidência de um estado psíquico com um evento externo simultâneo mas
distante no espaço.
3. coincidência de um estado psíquico com um evento externo distante no tempo.
Através da definição destas categorias, podemos perceber que nos fenômenos
sincronísticos, o tempo e o espaço são relativos, isto é, o fenômeno acontece
independente destes. Basicamente o que define a sincronicidade são a
coincidência e o significado.
Jung observou também que tais coincidências ocorrem principalmente quando um
arquétipo está constelado. O arquétipos são fatores psicóides que possuem uma
transgressividade pois “não se acham de maneira certa e exclusiva na esfera
psíquica, mas podem ocorrer também em circunstâncias não psíquicas (equivalência
de um processo físico externo com um processo psíquico).” (CW VIII, par. 954)
Jung propõe que o princípio de sincronicidade seja acrescentado à tríade espaço,
tempo e causalidade, dizendo que “o espaço, o tempo e a causalidade, a tríade da
Física clássica, seriam complementados pelo fator sincronicidade, convertendo-se
em uma tétrada, um quatérnio que nos torna possível um julgamento da
totalidade”(CW VIII, par. 951). Um gráfico então ficaria assim:
Espaço
Causalidade
--------------------------- Sincronicidade
Tempo
Porém através de
sugestões de Pauli, Jung e ele modificam o gráfico substituindo o esquema
clássico da física pelo moderno, ficando assim:
Energia Indestrutível
Conexão constante
de Conexão inconstante
fenômenos através do -------------------------------------------------------
através de contingência
efeito (causalidade) com identidade de significado (sincronicidade)
Continuum
Espaço-Tempo
Através desse
modelo, a microfísica e a psicologia profunda se aproximam, chegando na
concepção dos arquétipos como constantes psicofísicos da natureza e fatores
estruturantes criativos.
Jung referiu-se à sua definição de sincronicidade como sincronicidade em sentido
estrito e a diferenciou de uma visão mais abrangente de sincronicidade que
chamou de ordenação acausal. Os fenômenos sincronísticos em sentido estrito são
“atos de criação” no tempo, e incluem a telepatia, fenômenos ESP e PK. Já a
organização acausal geral inclui todos estes “atos de criação” e todos os
fatores a priori como as propriedades dos números inteiros e as descontinuidades
da física moderna.
É com base neste princípio de organização acausal geral que Jung tece suas
considerações sobre o número. Ele diz que o cálculo é o método mais apropriado
para se tratar do acaso, pois o número é misterioso, nunca foi despojado de sua
aura numinosa. “Se, como diz qualquer manual de Matemática, um grupo de objetos
for privado de todas as suas características, no final ainda restará o seu
número, o que parece indicar que o número possui um caráter irredutível.” Pelo
fato de o número ser o elemento ordenador mais primitivo do espírito humano, ele
“é o instrumento indicado para criar a ordem ou para apreender uma certa
regularidade já presente, mas ainda desconhecida, isto é, um certo ordenamento
entre as coisas.” Por isso Jung chegou a chamar o número de “o arquétipo da
ordem que se tornou consciente” e cita a estrutura matemática das mandalas,
produtos espontâneos do inconsciente para chegar à conclusão de que “o
inconsciente emprega o número como fator ordenador”. (CW VIII, par.870)
Os precursores históricos
Jung dedica uma parte do “Sincronicidade: um princípio de conexões acausais”
para falar dos precursores históricos da sincronicidade. Ele afirma que a
concepção chinesa da realidade, e particularmente o conceito de Tao, é, em
grande parte, sincronística. Ele diz: “...segundo a concepção chinesa, há uma
“racionalidade” latente em todas as coisas. Esta é a idéia fundamental que se
acha na base da coincidência significativa: esta é possível porque os dois lados
possuem o mesmo sentido.” (CW VIII, par. 912)
Aqui no ocidente esse princípio existiu por muito tempo. Jung diz que “a
concepção primitiva, assim como a concepção clássica e medieval da natureza,
postulam a existência de semelhante princípio ao lado da causalidade.” (CW VIII,
par. 929) A idéia de uma unidade de toda a natureza (unus mundus) permeia essas
concepções, e portanto nelas não existe uma diferença entre o micro e o
macrossomo - há uma correspondência entre todas as coisas; também permeando
essas concepções está a idéia de que existe na natureza uma fonte de todo
conhecimento que se situa fora da alma humana, um conhecimento absoluto. Porém
antigamente não se pensava em sincronicidade porque não se pensava em acaso.
Tudo era atribuído a uma causalidade mágica que hoje nos parece ingênua. Com o
advento do pensamento científico, essas concepções desaparecem. Jung aponta o
que fez com que desaparecessem dizendo que “com a ascensão das ciências físicas,
no século XIX, a teoria da correspondentia desaparece por completo da superfície
e o mundo mágico dos tempos antigos parece sepultado para sempre.” (CW VIII,
par. 929) Mas essa idéia de uma sincronicidade e de um significado subsistente à
natureza, que é a base do pensamento chinês clássico e faz parte da concepção
ingênua da idade média, embora pareça a alguns uma regressão, teve que ser
retomada pela psicologia moderna uma vez que só o princípio da causalidade não
explica toda a realidade dos acontecimentos.
Jung aponta como precursores da idéia de sincronicidade a “simpatia de todas as
coisas” de Hipócrates; a idéia de que o sensível e o supra-sensível estão unidos
por um vínculo de comunhão de Teofrasto; a idéia de uma necessidade e amizade
que une o universo de Filo de Alexandria; a idéia de mônada, que também tem um
significado de unidade de todas as coisas, do alquimista Zózimo; a alma
universal de Plotino; a idéia do mundo como um único ser de Pico Della Mirandola;
o “conhecimento” ou “idéia” inata dos organismos vivos de Agrippa von Nettesheim
e a idéia da anima telluris de Johann Kepler. Jung cita também Schopenhauer e a
idéia da vontade ou prima causa e da simultaneidade significativa (daí o termo
“sincronicidade” usado por Jung). Mas o autor que Jung mais cita é Gottfried
Wilhelm Leibniz. Leibniz explica a realidade através de quatro princípios:
espaço, tempo, causalidade e correspondência (harmonia praestabilita). Este
último é um princípio acausal de sincronismo dos acontecimentos psíquicos e
físicos. Jung discorda de Leibniz em apenas um ponto: para Leibniz este é um
fator constante, enquanto que para Jung os eventos sincronísticos ocorrem
esporadica e irregularmente.
AS ARMADILHAS DO
CONCEITO DE SINCRONICIDADE
Para o pensamento ocidental desde Descartes, a “explicação científica” remonta a
uma validação causal: D é causado por C, C por B, B por A. Não é de espantar
então que a discussão da hipótese de Jung de um princípio de sincronicidade
tenha produzido inúmeros mal-entendidos.
Marie-Louise von Franz em seu artigo “A Contribution to the Discussion of C.G.
Jung’s Synchronicity Hipothesis” aponta uma série de erros que já se cometeu ou
que se pode cometer na interpretação desse conceito e que aqui serão resumidos e
sistematizados.
A autora começa falando das dificuldades que muitos parapsicólogos têm em
compreender esse novo modo de pensar e diz que:
Na minha opinião isso vem do fato de muitos parapsicólogos estarem sempre
fazendo um esforço intenso por conseguir a aceitação de seu campo
fundamentando-o em um método científico “rigoroso”, isto é, em métodos
quantitativos e pensamento causal enquanto que justamente o que a hipótese de
Jung propõe está em uma direção oposta para longe daquilo que até agora foi
considerado o único modo “científico” de pensar. (p. 229)
Ela então continua falando de algumas pessoas que tendem a achar que a
sincronicidade explica os fenômenos “psi” causalmente e afirma:
a hipótese da sincronicidade não “explica” causalmente os fenômenos psi, mas
comparada com os resultados obtidos até hoje pelas pesquisas, ela os coloca em
um contexto novo, mais amplo, isto é, no domínio dos arquétipos, um campo no
qual estudos biológicos e psicológicos detalhados já foram feitos. Entretanto
estes estudos infelizmente parecem ser desconhecidos da maioria dos
parapsicólogos. (p. 230)
Outra tendência errônea é encontrada entre aqueles que buscam uma explicação
neurológica para os fenômenos sincronísticos, quando na verdade o que
caracteriza um evento sincronístico é justamente a ausência de uma relação
causal. Há também aqueles que supõem que os eventos sincronísticos sejam
causados pelo inconsciente do observador. Com relação a isto, ela diz:
De acordo com a visão junguiana, o inconsciente coletivo não é de forma alguma
uma expressão de desejos e objetivos pessoais, mas uma entidade neutra, psíquica
em sua natureza que existe de uma forma absolutamente transpessoal. Atribuir a
ocorrência de eventos sincronísticos ao inconsciente do observador não seria
nada além de uma regressão ao pensamento mágico primitivo, de acordo com o qual
supunha-se antigamente que, por exemplo, um eclipse poderia ser “causado” pela
malevolência de um feiticeiro. Jung chegou a advertir explicitamente contra
considerar-se os arquétipos (ou o inconsciente coletivo) ou poderes psi como
sendo a agência causal dos eventos sincronísticos. (p.231)
O fato do evento sincronístico não ter uma causa pode levar ao erro de se
imaginar que tudo aquilo que não tem uma causa conhecida é um evento
sincronístico. Quanto a isso Jung é bem claro, afirmando que: “Devemos
obviamente nos prevenir de pensar todo evento cuja causa é desconhecida como
“sem causa”. Isso é admissível apenas quando uma causa não é nem sequer
imaginável. Este é especialmente o caso quando espaço e tempo perdem seu
significado ou aparecem relativizados, caso em que uma conexão causal também
torna-se impensável.” (CW VIII, par. 957)
A questão do significado, que é crucial na classificação de um evento
sincronístico, também pode causar confusões. Afirmar que a existência de um
observador que dê significado ao evento é fundamental não quer dizer que os
eventos sincronísticos e seu significado sejam produzidos pelo observador. Essa
questão do significado também traz outros problemas. Pelo fato do significado
ser subjetivo, como podemos saber se não estamos fantasiando um significado
quando na realidade ele não existe? Tudo o que diz respeito a fenômenos
arquetípicos tem uma “lógica” de asserção que Jung chama de “necessary
statements” (“afirmações necessárias”). Estas não são criadas pelo ego, são
“impostas” pelo arquétipo e são esperadas sempre que um arquétipo está
constelado, como é o caso dos eventos sincronísticos, nos dando um parâmetro
para saber se o evento é mesmo significativo ou não.
A ordenação acausal e o “conhecimento absoluto” que estão por trás dos eventos
sincronísticos não devem ser confundidos com um “Deus” teológico. É possível
postular um deus faber por trás destes eventos, mas isso vai além de qualquer
possibilidade de prova e Jung nunca o fez.
Já que a constelação de um arquétipo é fundamental para a ocorrência de um
evento sincronístico, é fácil incorrer no erro de considerar que foi o arquétipo
que o ‘causou’. Jung diz que:
Eu me inclino, porém a admitir que a sincronicidade em sentido mais estrito é
apenas um caso especial de organização geral, aquele da equivalência dos
processos psíquicos e físicos onde o observador está em condição privilegiada de
poder reconhecer o tertium comparationis. Mas logo que percebe o pano de fundo
arquetípico, ele é tentado a atribuir a assimilação dos processos psíquicos e
físicos independentes a um efeito (causal) do arquétipo, e assim, a ignorar o
fato de que eles são meramente contingentes. Evitamos este perigo se
considerarmos a sincronicidade como um caso especial de organização acausal
geral. (...) ... devemos considerá-los [os acontecimentos acausais] como atos de
criação no sentido de uma creatio continua (criação contínua) de um modelo que
se repete esporadicamente desde toda a eternidade e não pode ser deduzido a
partir de antecedentes conhecidos. (CW VIII, par. 516)
A organização arquetípica “aparece” ou torna-se “visível” em um evento
sincronístico, mas não é a causa deste. O evento sincronístico é uma creatio, um
surgimento espontâneo de algo inteiramente novo e que portanto não é
predeterminado causalmente.
Embora Jung tenha sugerido que a ordenação acausal geral pode ser verificada
experimentalmente através dos métodos de adivinhação, os eventos sincronísticos
não são passíveis de serem investigados estatisticamente, uma vez que Jung é
claro ao afirmar que os eventos sincronísticos são imprevisíveis, espontâneos e
não podem ser repetidos.
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