Por:
Prof. Dr. José Jorge M. Zacharias
As questões e
conflitos entre psicologia e práticas místicas ou religiosas têm adquirido
relevância em nosso meio, seja em função de posturas cristãs fundamentalistas ou
esotéricas de alguns colegas. Atendendo a esta demanda, os Conselhos buscam
esclarecer e fundamentar a prática da psicologia nos parâmetros éticos e
científicos da profissão.
A chamada “onda
mística que assola o País já há alguns anos” não é algo tão facilmente
desconsiderado ou que devamos simplesmente pensar em resguardar a psicologia da
“lama negra do ocultismo”, como no início da psicanálise. Parece que a questão
não é tão simples assim.
Nossa cultura foi
construída na tradição católica popular portuguesa, amalgamada por práticas
religiosas indígenas e africanas. Nossa religiosidade sempre incluiu aspectos
místicos que foram se difundindo na cultura em geral. E que de outro modo
poderia ser, uma vez que uma das expressões humanas é o comportamento religioso
– devotado a um deus, aos espíritos, ao capital ou ao partido? O comportamento
religioso e místico é observado em todas as culturas e épocas, mesmo quando a
Razão foi elevada à condição de deusa durante o Iluminismo.
Isto posto, não entendo a questão do misticismo esotérico como algo que bate às
portas da psicologia há alguns anos. Se isto for verdadeiro, é o mesmo que
admitir que a psicologia nunca quis olhar a dimensão mística e religiosa de
nossa cultura. Quem poderá afirmar que o misticismo chegou no País depois da
psicologia?
É fato de que em
muitas regiões do Brasil as pessoas confiam mais nas tradicionais benzedeiras do
que nas práticas médicas convencionais. Certamente este dado evidencia uma
sociedade organizada na desigualdade social, em que muitos nunca tiveram acesso
a tratamentos médicos adequados e que o apoio místico das benzedeiras foi o
único alento em meio ao sofrimento físico e emocional. Não quero dizer com isto
que somente o tratamento médico resolveria todo o problema, pois se pode correr
o risco de perder a alma sem as benzedeiras. Entendo alma aqui como raiz,
cultura e espírito de uma comunidade.
Com o
desenvolvimento das ciências biológicas, psicológicas e sociais, certamente os
antigos xamãs, curandeiros, adivinhos e outros foram forçados a ceder lugar aos
médicos, psicólogos e sociólogos. Os séculos XIX e XX demonstraram o triunfo da
ciência e igualmente o da insanidade. Não estou me referindo ao doente mental,
que foi institucionalizado na tentativa da sociedade exorcizar o seu próprio mal
estar coletivo, personificado no indivíduo desidentificado. Refiro-me aos que
julgando-se portadores da racionalidade científica jogaram o mundo em duas
grandes guerras, em holocaustos e guerras, para dizer o mínimo, insanas. Nunca
houve tanta ciência no mundo, e este conhecimento jamais se comprovou
comprometido exclusivamente com o bem estar e desenvolvimento humano.
Não pretendo aqui
negar o conhecimento científico e tão pouco sua importância no desenvolvimento
humano, mas gostaria de afirmar minha posição de que a ciência não é a única
verdade pela qual deva se pautar a vida humana e a sociedade. O dinamismo humano
inclui outras verdades que, embora não sejam científicas, compõe o substrato de
nossa experiência.
Refiro-me a um
quatérnio de “campos de experiência”, em que cada qual possui suas verdades, e
conjunto de saberes, ainda que por métodos diferentes. Como podemos afirmar que
a metodologia científica é a única forma de se acessar um conhecimento? Cada um
dos quatro campos tem sua metodologia própria, e estas metodologias podem criar
pontes de diálogo através de uma abordagem sistêmica e holística.
Estes campos são: As Ciências, As Artes, As Filosofias e As Religiões.
Quem atenta para
o humano e para si mesmo, percebe a dinâmica destes saberes que coexistem na
experiência humana, se entrelaçam, se constroem e reconstroem ao longo da vida e
da história. Uma verdade cientifica é tão real quanto uma verdade artística,
religiosa ou filosófica. Cada saber se constrói com base nas diversas
experiências. Assim, os pressupostos da física, da biologia ou da psicologia são
tão válidos quanto o é a obra de J. S. Bach, a filosofia de Kant ou os milagres
de Lourdes. Não se utiliza o mesmo método para cada um destes saberes mas, todos
eles não exprimem verdadeiramente o fato da existência humana?
Deixando estes
saberes todos ao mesmo nível e importância para o desenvolvimento e compreensão
humana, gostaria de propor um sistema de abordagem – a questão do olhar.
Entendo cada um
de nós como um ser único, apesar de multifacetado. Prefiro me referir ao ser
humano como um fenômeno humano que é manifesto em cada indivíduo e na sociedade
(presente e histórica). Assim, posso abordar este fenômeno através de diversos
olhares. Posso compreender a experiência pelo olhar religioso ou pelo olhar
científico.
Se optar pelo
olhar religioso, ainda preciso definir se avalio e compreendo a experiência do
meu interlocutor sob o olhar da minha perspectiva religiosa ou da dele. ( se
pretendo convertê-lo ou afirmar sua crença).
Se optar pelo
olhar científico, mais especificamente o psicológico, preciso avaliar e
compreender a experiência do meu cliente sob o enfoque da ciência psicológica.
O que está em
jogo não é o fenômeno em si, que pode abarcar muitas leituras; mas a questão
está “nos olhos de quem vê”. Posso observar uma plantação de soja como um belo
quadro, uma obra do Criador, um bom desempenho agronômico, um processo
biológico, um valor econômico, uma exploração de bóias-frias e muito mais. O
fenômeno é o mesmo, o que muda é o olhar. E a possibilidade do diálogo entre os
olhares diversos possibilita uma maior aproximação do fenômeno observado, com
suas múltiplas implicações.
Neste sentido, o
psicólogo deve estar consciente do olhar profissional que é esperado dele. O
psicoterapeuta não é, no exercício de sua profissão, um xamã – embora trabalhe
com os mesmos conteúdos. O que diferencia um do outro é o olhar, a maneira e os
referenciais conceituais para interagir com o conteúdo exposto pelo cliente.
O mundo dos
espíritos e o inconsciente possuem fenomenologia semelhante. No entanto, o
psicólogo o abordará do ponto de vista científico e o xamã do ponto de vista
mágico e espiritual. Um não invalida o outro.
Igualmente, quando o cliente traz conteúdos religiosos, a conduta mais
apropriada ao psicólogo é compreendê-los sob os parâmetros da ciência
psicológica e das crenças do cliente, sejam elas quais forem – sem julgamento ou
preconceito. A dinâmica religiosa é do cliente e o terapeuta deve respeitar
isto, sabendo que a ciência não invalida a religiosidade, mas que esta compõe o
todo do seu cliente. Por outro lado, o psicoterapeuta deve atuar com o olhar
científico, dialogando com as crenças e valores de seu cliente, bem como com a
experiência religiosa deste, sob o ponto de vista dos conteúdos religiosos
próprios do cliente e nos limites da prática psicológica cientificamente
recomendada.
Finalizando,
acredito – e esta é uma expressão da minha crença religiosa na vida- que o
fenômeno humano é vasto e não cabe somente nos parâmetros da ciência. – Alguém
já imaginou um mundo repleto de seres racionais, deterministas e probabilísticos
sem música? – No entanto, na prática profissional, há a necessidade de se
diferenciar os saberes científicos dos olhares místicos ou religiosos.
Procurar
compreender a pessoa como um ser plural e único e, humildemente, atuar dentro
dos limites a que fomos treinados - o olhar psicológico - trará dignidade e
profundidade ao nosso trabalho e, quem sabe, poderemos ficar um pouco mais
próximos da sabedoria. |