Embora a Igreja patriarcal de
Roma tendesse a impor uma atmosfera intelectual rígidamente controlada
conforme seus objetivos e interesses temporais, a presença da filosofia
espiritualista de
Platão e dos
Neoplatônicos nunca foi totalmente
suprimida, durante a Idade Média. Mesmo quando o interesse por Aristóteles
tornou-se a primazia, no século XIII, o neoplatonismo ainda era estudado,
sobretudo na Alemanha, país que sempre se destacou por sua luta pela
liberdade intelectual, e, mais tarde, com Lutero, pela espiritual. Isso
explica o fato de que os estudiosos dominicanos da cidade de Colônia e de
outros centros renananos, onde também vivera Hildegard von Bingen, haverem
construído uma ambiente particularmente favorável a um segundo renascimento
do neoplatonismo, caraceterizado por uma intensa acentuação mística. Até
mesmo entre os padres da escolástica medieval, que mergulhava cada vez mais
o mundo num universo cheio de dogmas superficiais, havia um certa saudade de
uma pureza mística, pois o que é essencial é o retorno da alma a Deus, a sua
união com Deus.
Foi neste ambiente propício, talvez não por
acaso, que surgiu o mestre dominicano Eckhart, um dos maiores lumiares da
filosofia medieval e do misticimo do ocidente, e sobre quem falaremos agora.
Mestre Eckhart nasceu em Hochheim, na
Turíngia, em 1260. Ingressando no convento dos dominicanos de Erfurt,
estudou em Estrasburgo e em Colônia. Tornou-se mestre em Teologia e ensinou
em Paris entre 1302 e 1304. Exerceu vários cargos eclesiásticos na Alemanha.
Estabeleceu-se definitivamente em Colônia em 1320. Escreveu várias obras,
entre elas Pregações e Tratados.
Em sua obra está muito presente a
unidade entre Deus e o homem, entre o
que consideramos sobrenatural e o que achamos ser natural. É um pensamento
holístico, pois. Como afirmava
Plotino, Eckhart também acreditava que
sem um algo,
a que chamamos Deus, o homem e o mundo não teriam nenhum sentido e nada
seriam. Alguma "coisa" tem de dar sentido a tudo o que existe. Tudo tem de
ter uma razão de ser. Na verdade, não existe um mal absoluto, existe tão só
o erro na busca da evolução da alma. Tudo está imerso numa Unidade. A
Unidade é dinâmica e é diversidade, assim como as sete cores são o
arco-íris. Somos frutos, mas os frutos nascem de uma árvore, e o fruto
carrega a árvore. Assim, somos filhos de Deus, mas também somos Deus. E
assim tudo rearfirma a Unidade. E tal é o poder que temos, que o mundo
sempre será para nós aquilo que dele pensarmos. Mas o Deus "que está em
todas as criaturas é o mesmo que está acima delas, pois aquilo que é Uno
deve ser mais que a mera soma das coisas". Isto é um belíssmo exemplo do que
hoje entendemos por pensamento holístico.
Bom, se tudo existe por que uma causa os fez
existir, qualquer que seja o nome que dermos a esta causa, ela estará acima
do fruto que dela veio. Bom, se considerarmos que tudo o que existe existe
por obra do Ser Divino, isso significa que temos uma razão de existir, pois
o Supremo não faria nada de inútil. Sendo assim, Ele terá necessaramente de
amar a seus frutos. Por isto existe uma Unidade entre Deus e o homem. E é
por essa razão que o homem sente-se atraído e tenta voltar a Deus, pois é na
União que há sentido, sem que haja anulação. Para isso, para poder ir de
encontro a Deus, o homem deve ser livre: "Livre espírito é aquele que não se
preocupa com nada e a nada se liga" (isso lembra a mensagem budista do
desapego), "já que se aprofunda na amantíssima vontade de Deus". E quem tem
Deus, ou seja, quem o encontra em si
mesmo "o tem em todos os lugares, nas
ruas e entre as pessoas, da mesma forma que na Igreja, na solidão ou na
cela". Se ele O encontrou realmente, encontou a pérola de grande valor, e
fará de tudo para mante-la consigo. Se ele a possui verdadeiramente, ninguém
que não a possua também poderá perturba-lo. E se o tem, exatamente por
também a ter, não irá perturba-lo. Assim, para Eckhart, por que não nos
abandonarmos em Deus? Jesus não disse que "as aves do céu não amontoam em
celeiros, nem cultivam, mas mesmo assim o Pai do Céu não as alimenta? Não
sóis vóis mais que as aves?"
Devemos reconhecer Deus em nós, mas este
caminho não é fácil. O homem deve se "exercitar nas obras, que são seus
frutos", mas, ao mesmo tempo, "deve aprender a ser livre mesmo em meio às
nossas obras".
Eckhart morreu em 1327. Em 27 março de 1329,
mais uma vez a infalibilidade
papal se fez presente onde não compreende o transcendente. Neste dia foi
dado ao público a bula In agro dominico,
através do qual o Papa João XXII condenou vinte e oito proposições do Mestre
Eckhart. Das vinte e oito, dezessete foram consideradas heréticas e onze
consideradas escabrosas e temerárias. Entre estas, estava a de que nos
transformamos em Deus. Mas esta condenação papal justifica-se na medida que
as idéias de Eckhart tinham uma dimensão revolucionária. Elas foram
acolhidas pelas camadas populares e burguesas, que interpretavam o apelo
eckhartiano à interioridade da fé e à união divina como uma rebelião
implícita à exterioridade "farisáica" de uma hierarquia e de um clero
moralmente decadente (parece que a coisa nunca mudou muito mesmo). Sua
herança influenciou, entre outros, significativamente, a Martinho Lutero.
Outros grandes e
famosos místicos da Idade Média e do Renascimento foram: Francisco de Assis,
Juan de La Cruz, Tereza D'Ávila, e, talvez a mais sofrida, Joana D'Arc. As
teorias reducionistas e mecanicistas da Psiquiatria e da Psicanálise não
explicam o trabalho, o carisma e a ernorme influência que estas figuras
exerceram na história da humanidade. Nelas, algo de muito especial ocorreu,
e não será por querermos que o universo seja da forma como achamos que ele
deva ser que o brilho de suas vidas possam ser manchados com nossas tolas
teorias racionais.