John Duns Scotus foi fundador e líder da famosa Escola
Escotista e um dos mais importantes filósofos escolásticos. Pouco se sabe
sobre a sua formação, e seu local de nascimento é discutido até hoje. Há,
todavia, algum consenso de que ele teria nascido em 1266, na cidade de
Duns, na Escócia, nas proximidades da fronteira inglesa.
Diz a lenda que Scotus possuía uma inteligência muito obtusa quando
criança e que, ao rezar para a Virgem pedindo pela luz da sabedoria, teria
sido atendido e, desta forma, tornado receptivo à vida teológica.
É de conhecimento dos estudiosos que, após ter sido ordenado bispo de
Lincoln, em março de 1291, Scotus partiu em uma série de viagens pela
Inglaterra, França e Alemanha, buscando aprofundar os seus estudos. Viveu
e lecionou em Oxford, em Paris e Colônia, construindo pouco a pouco a sua
fama de grande escolástico.
Em 1303, na famosa contenda entre Filipe o Belo e o Papa Bonifácio 8º,
Scotus é expulso da França por ter sido um dos únicos na Universidade de
Paris que se recusara a ceder às ordens do rei. Após um ano, a situação
acalmada, retorna a Paris como regente da universidade e recebe o título
de Mestre em Teologia (magister theologiae).
Scotus morreu relativamente jovem, aos 42 anos, em Colônia. Sua
beatificação só foi concedida no século 20, pelo papa João Paulo 2º, e
hoje (2009) está prestes a ser canonizado (provavelmente o processo mais
longo de santificação da história).
Ao lado de Tomás de Aquino, São Boaventura e Alberto Magno, Duns Scotus
foi uma das grandes figuras do apogeu escolástico, fundando seu pensamento
em Platão, Avicena e Aristóteles.
Seus escritos são numerosos, porém não deixou uma summa. Muitas das suas
ideias são encontradas espalhadas por diversos trabalhos, alguns deles
incompletos, o que dificulta a recomposição de sua doutrina. Para piorar,
a linguagem de Scotus é geralmente obscura, difícil, labiríntica. Não por
menos recebeu a alcunha de Doctor Sutibilis, o Doutor Sutil.
Sua obra principal é a famosa Opus Oxoniense, o grande comentário sobre as
"Sentenças" de Pedro Lombardo, lidando com teologia, lógica, metafísica,
gramática e tópicos científicos. Duro em suas críticas, Scotus refutava os
argumentos de seus oponentes com uma lógica férrea.
Univocidade
Scotus negava uma distinção real entre essência e
existência, opondo-se, portanto, à doutrina tomista, que primava pela lei
da analogia. Para ele, não podemos conceber o que é ser algo sem conceber
este algo existindo realmente. Não se faz distinção entre se uma coisa
existe (si est) e o que ela é (quid est).
Provas da existência de Deus
Segundo Scotus, há, de forma evidente na realidade, as
coisas criadas e as coisas incriadas. Todos os seres da realidade são
seres evidentemente finitos, porque limitados, carentes de alguma
perfeição. Os seres possuem uma causa e um efeito, contêm limites e
fronteiras, são contingentes. As coisas criadas, vemos por nós mesmos: o
ser humano que nasce e morre, a árvore que brota e seca, as estrelas que
explodem numa supernova.
Às coisas incriadas, por sua vez, vemos pelo intelecto. Como mostrava
Parmênides, nada advém do nada, pois o nada não pode ser coisa alguma,
logo o ser sempre é. Se o ser não fosse em algum instante, haveria o nada,
e já que do nada nada pode vir, o ser é infinitamente. Argumenta Scotus
que Deus é este ser infinito, ilimitado, incondicionado e infinitamente
perfeito, o ser em sua intensidade absoluta, o Ato Puro de Aristóteles.
É possível um ser por outrem? A experiência mostra que sim. E é possível
um ser por si? Se é possível, existe em si mesmo. Se não, temos a série
infinita de causas, que Scotus, através de diversos argumentos, demonstra
ser impossível. É impossível, portanto, não haver um ser incausado; esta é
a conclusão a que chega Scotus.
O que ele faz, então, é redefinir o argumento de Santo Anselmo (também um
platônico). Para Duns Scotus, o ser é conhecido por si, e a infinidade não
lhe é contraditória, pois ela é perfeitamente inteligível. Há, portanto,
compatibilidade entre infinitude e o ser; e se a infinidade é uma
perfeição possível, o ser supremo, que é Deus, é necessariamente infinito.
Ou seja, o que está na mente está em Deus. É "aquele que não podemos
conceber outro maior", como diz Santo Anselmo, pois nada pensado pela
mente pode ultrapassar o ser.
Distinção formal
Segundo Scotus, o homem, quando criado no Paraíso, possuía
a intuição direta das essências dos entes, e esta capacidade teria sido
perdida através da queda pelo Pecado Original. Os seres humanos, herdeiros
do fado de Adão, encontram-se em um status naturae lapsae, estado de
natureza decaída, e esta é, segundo o franciscano, a razão de haver
diversas distinções de conhecimento entre a nossa mente e a realidade.
Havia na escolástica duas distinções fundamentais na teoria do
conhecimento: a distinção real (distinctio realis), que existe realmente
entre dois seres na natureza, e a distinção de razão (distinctio rationis),
que se dá entre dois seres na mente do sujeito que conhece.
O que Scotus faz é formular um terceiro nível de distinção, como um
meio-termo entre as duas anteriores. A distinção formal (distinctio
formalis) é a que ocorre na formalidade (formalitas) do ente percebido,
não tendo origem nem propriamente real nem propriamente mental. A
triangularidade e a quadralidade, por exemplo, são formalidades distintas,
mas não são por si entes reais, com existência física; existem como formas
de entes reais, mas têm realidade factual. Trata-se, portanto, de uma
distinção real-formal.
De acordo com o franciscano, um homem possui várias formas, como a
humanidade, a animalidade, a racionalidade etc., e, por fim, possui uma
forma que lhe é única, que lhe permite ser distinto, ser ele mesmo. Esta é
a distinção formal a parte rei (à parte da coisa), à qual Scotus dá o nome
de haecceitas, a "estidade" do ente, a qualidade dele ser "esta coisa" (haec
res) e não ser outra, ou seja, a sua individualidade.
Se na metafísica tomista esta distinção era puramente material, com Scotus
ela se tornará também formal.
Individualidade e universalidade
Scotus opunha assim a haeeceitas à natura communis. Para
ele, só existe o individual, e isto é um axioma fundamental para a
compreensão da realidade. Para apreendermos um individual, é necessária a
cognição intuitiva, que nos dá a existência ou não existência atual
(presente, eficiente) do individual, oposta à cognição abstrata,
universalista.
Muitos afirmam que esta posição de Scotus, especialmente com seu discípulo
William de Ockham, foi a grande responsável pelo fortalecimento do
nominalismo e a derrubada do realismo moderado aristotélico-tomista no
findar da Idade Média. Descartes, Leibniz, Hobbes, Kant e tantos outros
modernos teriam sido, assim, herdeiros da filosofia escotista. Há também
quem negue esta visão. Como se vê, Duns Scotus, com um pensamento ao mesmo
tempo sutil e notável, acabou se tornando centro de muitos debates e
especulações.