No século 13, a Escolástica vive sua era de ouro. O
ocidente cristão finalmente assimila as tradições árabe-judaicas e
alimenta sua filosofia com um imenso caudal de traduções e comentários de
textos gregos antigos.
Também nesse século, a grande obra aristotélica é convertida ao latim,
enquanto o tradicional mundo platônico de Agostinho balança. É a época das
grandes disputas e cisões dentro das universidades. Em Paris, as
recém-criadas ordens de frades e pregadores entram em choque, debatendo
doutrinas teológicas, os franciscanos contando com a grande figura de São
Boaventura para resistir ao vagalhão aristotélico que invade a Europa.
Vida
Em 1221, Boaventura nasce em Bagnorea, próximo de Viterbo,
na Itália central. Diz a lenda que seu famoso nome teria surgido quando,
ainda criança, fora curado de uma enfermidade por São Francisco, que
exclamara: "o buona ventura!".
Em sua juventude, é enviado a Paris para estudar com o grande franciscano
inglês Alexandre de Hales. Leciona como magister regens da universidade
até 1256, quando é impelido a abandoná-la, devido à violenta oposição
contra as ordens mendicantes por parte dos professores seculares. O auge
da crise se dá em 1265, quando Guillaume de Saint-Amour publica uma obra
atacando os frades com grande amargura, o que logo seria respondido à
altura pelo "De Paupertate Christi" de Boaventura.
Em uma época difícil, Boaventura é eleito geral dos frades menores, tendo
de administrar uma crescente crise interna entre os spirituales e os
relaxati franciscanos. Em 1273, muito a contragosto, é nomeado bispo e
cardeal de Albano por Gregório 10º. Boaventura morre no ano seguinte, a 15
de julho, sepultado num esplêndido funeral que conta com reis e cardeais
da Europa.
Foi um homem muito venerado por seu grande caráter e sua paixão teológica,
uma figura tão especial que seu mestre Alexandre de Hales dizia ter a
impressão de que ele havia "escapado do pecado original". Consagrado até
por Dante em sua Divina Comédia (no "Paraíso"), teve uma das canonizações
mais requisitadas da história.
Santo de grande piedade e profundo conhecimento, Boaventura escreveu sobre
quase tudo que os escolásticos abordaram. Entre os seus maiores trabalhos,
nos quais a filosofia e a teologia coadunaram-se profundamente,
encontram-se os "Comentários", uma impressionante obra de mais de quatro
mil páginas escrita pouco depois de completar 27 anos.
Entre seus seguidores e comentaristas estão figuras como John Peckham,
John of Erfurt, Hauzeur e Bonelli. Tendo sido um tanto esquecido entre o
século 14 e o 16, devido ao escotismo (corrente filosófica iniciada por
Duns Scotus), foi resgatado pelos capuchinhos e tem sido cada vez mais
estudado desde o século 19.
Agostinianos x Aristotélicos
Boaventura estimava a filosofia como uma verdadeira
ciência, mas a considerava inevitavelmente inferior quando comparada à
teologia. Alimentando um profundo respeito pela tradição, resistia
bravamente às novidades e modismos filosóficos que tanto contaminaram as
universidades na segunda metade do séc. 13.
Era grande agostiniano, sem dúvida, mas também conhecia muito de
Aristóteles e aceitava certas particularidades de sua filosofia, como o
hilemorfismo, sem nunca dispensar as mais severas críticas aos seus
fanáticos seguidores.
Boaventura e Tomás de Aquino, além de dois grandes amigos, foram os
maiores teólogos da Escolástica, e, embora muitos busquem exagerar a sua
oposição filosófica, ambos se completavam perfeitamente.
Mesmo os que entendem que Boaventura não atingiu o nível de Tomás na
Escolástica concordam que, como um místico, ele superou em muito o
dominicano. Não por menos que recebeu o título de Doutor Seráfico ainda em
vida, além do epíteto de O Príncipe dos Místicos, que receberia do papa
Leão 13.
O misticismo de Boaventura, contudo, não é um esquecimento da especulação
filosófica, mas uma presença eterna de Deus que coroa todas as suas
conclusões, na máxima conformidade ao credo ut intelligam de Agostinho e
Anselmo.
O grande franciscano unia enorme erudição a uma ardente piedade, sem nunca
em seus escritos divorciar o conhecimento do sentimento devoto. Contra a
árida especulação, dizia ele que "nenhum propósito útil é atingido pela
mera controvérsia".
Para Boaventura, filosofia e razão formam uma etapa no caminho que conduz
a alma a Deus. A fé leva à razão que leva à contemplação. Deve-se partir
do sensível para transcendê-lo, pois o sensível é apenas um sinal de Deus,
e não ele próprio.
As razões seminais
A expressão grega logos spermatikós, usada por Cleanto,
popularizada pelos estóicos e utilizada por Agostinho, era a afirmação de
que todo ser procede de uma "semente" que devia encerrar "razões seminais"
de suas menores partes. Cada semente, por menor que fosse, deveria conter
todas as partes do organismo a ser formado. Todos os seres têm uma "razão
seminal", um logos spermatikós.
Esta doutrina seria aproveitada por Boaventura ao explicar o devir da
natureza. A matéria-prima do mundo não é uma mera massa indeterminada, ela
contém em si as razões seminais infundidas por Deus desde a criação. Há,
assim, "tendências" na natureza a determinadas formas, há "regras" que se
atualizam conforme certas condições sejam atingidas - como a semente, que
é potencialmente uma árvore, mas que precisa da ação da chuva, do solo,
etc. para atualizar essa árvore.
A Scientia Christi
Em sua obra "De Scientia Christi", Boaventura contrapõe-se
à posição aristotélica que colocava a metafísica como a suprema ciência
(noção que começava a tomar corpo em Paris). Para ele, há lugar acima da
metafísica para uma ciência dos princípios, das leis eternas e internas a
Deus, que seria a décima ciência prometida pelos antigos, a "contemplação
sapiencial".
Se as formas são idéias na mente de Deus, como afirma a tradição
neoplatônica, diz Boaventura, "os seres criados não podem ser outra coisa
que não um reflexo da essência divina, e as leis que regem interiormente
esses seres não são mais do que uma imitação da lei interna de Deus". Em
todo ser há vestígios (vestigia) divinos.
O intelecto ativo de Aristóteles, que realiza a abstração, que "recorta" o
ser para melhor compreendê-lo, é, na concepção platônica e boaventuriana,
uma forma de "iluminação" divina. Se a luz (lux) é a própria forma
substancial, que é em si mesma imperceptível aos sentidos, o esplendor
(lúmen) é a forma acidental da luz, a luz sensível, a luz que vemos
refletida nas coisas. Para o franciscano, o filósofo que ignora esse
aspecto divino interno a cada ente só vê as coisas "como um resíduo
brilhante que carece de inteligibilidade".
Boaventura imagina um reductio, o processo pelo qual se reduz a verdade de
um juízo, de condição em condição, até chegar a essas verdades eternas.
Essa atividade não é uma intuição nossa, mas uma cointuição. Em resumo, é
a presença de Deus em nós que permite a sabedoria. Boaventura colecionou
centenas de passagens bíblicas que evidenciam a promessa dessa "Ciência de
Cristo".