A afirmação do homem, porém,
é aspecto que sensibiliza.
Apesar das investidas
materialistas, das asserções do estruturalismo, se recusa que o homem seja
unicamente matéria, um animal mais evoluído, possuindo apenas um cérebro
mais complexo. Tais limites são repelidos, pois há no fundo do ser racional
um anelo recrescente, insaciável de eternidade. Cerceado na sua natureza, o
homem se ultrapassa através de suas aspirações. Nenhum bem criado satisfaz o
élan-vital que o sustenta. Apenas Deus pode cobrir o vazio que o homem
encontra em si mesmo e em seu derredor. Irrequieto está o coração humano, no
dizer de Santo Agostinho, até que descanse em Deus.3 Trata-se de
comprovar que é junto d’Ele que o homem se realiza e encontra solução
satisfatória para as grandes interrogações que ele se põe sobre sua gênese e
seu destino. “L’homme n’est lui-même, escreve o Pe. Henri de Lubac, “parce
que sa face est illuminée d’un rayon divin... Si le Foyer disparaît, le
reflet aussitôt s’efface... Dieu n’est pas seulement pour I’homme une norme
que s’impose à lui et qui, en le dirigeant, le redresse; il est l’Absolu qui
le fonde, il est l’Aimant qui l’attire, il est l’Au-delá qui le suscite, il
est l’Éternel qui fournit le seul climat où il respire”.4
Não se preconiza chegar a
Deus pelo raciocínio, nem de se ter dele uma notícia. Trata-se do contato
com o Transcendente, que é o alicerce ôntico da dignidade humana. Surge
então não um Deus que mendiga adoração, mas um homem que sente a precisão de
Deus, razão de ser de sua própria qüididade e de sua permanência eidética.
Daí o empenho para sustentar a existência de Deus e esta postura é uma
barreira ao ateísmo que é visto como morte do próprio homem na medida em que
afasta Deus.
Este caminho é profundamente
evangélico, pois Cristo se fez semelhante ao homem, homem-Deus, para que,
através de sua humanidade, chegasse o homem até o Pai. Cristo trouxe ao
mundo a presença de uma Pessoa Divina numa natureza humana. O movimento
bíblico da katábasis, ou seja, da descida do Absoluto à
contingência do mundo e da história humana, oferece então o movimento
cristão de anábasis, isto é, de ascensão ao Primeiro
Princípio. Isto num posicionamento filosófico inteiramente diferente do
pensamento grego. A dialética ascendente que chegou ao ápice no êxtase
plotiniano do Uno levou a concepção de uma processão descendente dos seres a
qual se perde na indeterminação da matéria vista como eterna. Obscurecida a
noção de transcendência e abertas as portas ao panteísmo não há como
salvaguardar a noção exata da pessoa humana. O homem engrandecido por
Cristo, se afirma, porém, no encontro com Deus, Criador de tudo, através
do Verbo divino que se fez carne, tornando-se o caminho para o retorno ao
Ser Supremo. Este Deus já não é então o Senhor que despersonaliza, mas
exatamente Aquele que é o Valor Supremo.
Deus buscado não na
alienação, porque, neste caso, a inteligência que investiga as provas da
existência de Deus ou nele crê pela fé, depara um Ser Superno, não como
transposição de seu psiquismo, mas como Realidade que impregna uma vida.
Não se verifica então a
separação mundo e Deus, como se Este pelos seus preceitos viesse
infantilizar o homem e meramente obstar o exercício de seu livre arbítrio,
vigiando-o, exigindo sua fuga dos bens que estão no universo. É um Ser
presente no cosmos, envolvendo todos os seres em sua totalidade e que trava
diálogo com o homem. Este se sente, por isto, no mundo como na casa do Pai.
Percebe que é livre, mas que sua liberdade se concretiza no amor. Deus se
torna então para o homem o que é de fato: Amor. Dá-se o dito de Santo
Agostinho: “Dilige et quod vis fac”.5 Não há mais o
impasse da liberdade, como a conceituou Sartre.
É a total afirmação do homem
que percebe que Deus longe de ser sua diminuição é o seu mais sublime
suporte ontológico. Está então bloqueado o ateísmo. Deus é a fonte e a
garantia de todos os valores humanos. Estar conscientizado destes valores é
atingir implicitamente o Transcendente.
A questão não é mais negar a
Deus para afirmar o homem, mas de afirmar a Deus, valor essencial do homem.
Não que Deus tenha que existir para que o homem tenha valor, mas o homem tem
valor porque Deus existe.
Conclusões
O humanismo cristão deve ser
uma das principais preocupações de quem deseja custodiar a crença em Deus,
pois leva a se ter dele uma concepção coerente.
Não há, de fato, entre
muitos crentes uma fé viva e conseqüente. Muitos são supersticiosos, esperam
milagres e se apegam ao maravilhoso. A idéia de Deus, nas elites cristãs do
Ocidente, cumpre seja aprimorada, sem antropomorfismos e sem contradições.
Seja menos superficial. Ora, isto pode ser obtido através de um lídimo
humanismo, por causa de suas aplicações individuais e sociais.
É a caminhada segura para
Deus e não uma simples afirmação de Deus, crença que pode se desfazer
facilmente por não ser sólida. A vera compreensão da importância do homem
conduz até Deus. Este já não é concebido como simples espectador do qual
tudo se espera passivamente. Não é mais negado, mas é algo presente na vida
do homem que O vê nos outros homens e n’Ele passa a viver, a se mover e
existir. É a mentalização de que Ele está presente em todos os seres por
lhes ser metafisicamente imprescindível, embora seja transcendente por ser o
Criador de tudo.
O humanismo genuíno pode
despertar a fé de muitos descrentes.
Há homens que asseveram que
Deus não existe, mas interiormente O admitem. Na vida social O negam, mas no
íntimo crêem no Criador do universo. A vida individual, familiar, social é,
porém, organizada, fazendo-se abstração completa de Deus. O humanismo pode
impedir os males deste laicismo, pois O ostenta como Valor Supremo que longe
de diminuir o ser racional o eleva e, portanto, tudo deve ser sistematizado
em função dele.
O humanismo cristão faz com
que Deus envolva inteiramente o comportamento daquele que crê.
O ateísmo contemporâneo
tende a informar a existência toda do ateu. É mais do que uma filosofia
entre outras filosofias. Ele se torna um modo de vida manifestado nos
costumes e nas leis, nos trabalhos e lazeres, nas artes e na vida pública. É
o que, inversamente, deve acontecer com aqueles que crêem em Deus como
supremo valor do homem. Religiosidade envolvente, não fortuita aceitação de
fórmulas doutrinárias ou de certas expressões do culto, mas crença que
precisa impregnar toda a sociedade.
Deus aceito pela via do
humanismo leva a uma religião consciente. Os atos litúrgicos já não são uma
mera prática social ou simples adesão a ritos tradicionais, mas manifestação
vital. É o reconhecimento do sinal de Sua presença. Uma experiência real,
pessoal, antropológica, individual. Deus se torna vida, Infinito que abarca
o finito.
Aí o terreno apto para
eclodir uma convicção racional.
Em conseqüência, a
civilização se faz vitalmente cristã. Uma sociedade política essencialmente
evangélica em virtude da própria índole que a anima e que lhe dá forma. Não
decorativamente cristã, mas de fato. Deus buscado como salvação do homem,
mas também visto nos outros homens e neles amado. Este amor modificaria a
História, arrancando-lhe os sintomas das injustiças que podem macular uma
sociedade pautada pelo Evangelho.
Notas
1
Pe. Stanislavs Ladusãns, O GLOBO, Rio de Janeiro,
19.11.1971. p. 7.
2
De natura deorum,
Livro I, cap. 23.
3
Confessiones
I, 1,1; 1,7s. “Tu excitas, ut laudare te delectet; quia fecisti nos ad Te,
et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te”.
4
Henri de Lubac, Le drame de I’humanisme athée, Paris, Spes,
1945.p.64.