O Tomismo II - Século XIX e XX

Por Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho

O tomismo no século XIX e XX

 

O centenário da Encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII, em 1979, na qual o imortal Pontífice fala sobre a Filosofia Cristã, fez brilhar, ainda uma vez, a figura inigualável de Santo Tomás de Aquino e mostrou o vigor do tomismo no século passado.

Santo Tomás de Aquino impôs-se sempre pela sua santidade e sua sabedoria. Repleto de grande sapiência, pois o que há de mais excelso nos seus escritos é fruto da contemplação do Deus no qual vivia imerso. A maior parte de sua vida, a passou Santo Tomás num colóquio ininterrupto com o Ser Supremo. Contemplata aliis tradere ‑ transmitir o que foi buscado no mundo sobrenatural, é bem o que se deu com o “doutor comum”.

Foi chamado doutor angélico, porque anjo pela pureza de sua vida e por possuir uma intuição angelical.

O. Wilmam compara a inteligência de Santo Tomás com a “ondulação de um lago, que recolhe todas as águas que chegam de diversas partes e deixa cair ao fundo o que estas arrastam em sua corrente, de forma que a superfície das águas formem um espelho claro e tranqüilo no qual reflete o formoso azul do céu”.1 Os seus contemporâneos ficavam admirados por verificar que Tomás de Aquino nunca perdia tempo. Sua conversação era sem cessar sobre o que dizia respeito a Deus e se, porventura, algum companheiro de claustro ventilava outros temas, ele se esquivava delicadamente e se punha a caminhar a sós, refletindo, meditando.

 A Suma Teológica foi o resultado mais precioso de suas elocubrações profundas, constituindo as suas obras um sistema coerente e o que melhor se produziu para expressar o pensamento cristão global e em sua mais genuína beleza. Os papas e os concílios recomendaram-no como o Mestre seguro e a ser  seguido, sendo a Encíclica de Leão XIII, de 1879, a consagração definitiva da sua segurança doutrinal. Eis um texto deste documento: “De espírito aberto e penetrante, de memória fácil e segura, de perfeita integridade de costumes, não tendo outro amor senão o da verdade, riquíssimo de ciência tanto divina quanto humana, justamente comparado ao sol, ele aqueceu a terra pela irradiação das suas virtudes e encheu-a do esplendor de sua doutrina”.2

Muitas vezes se esquece, porém, que a evolução cultural de Santo Tomás se deu por entre formidáveis controvérsias e paixões. Ele não tergiversou e venceu a dúvida, superou a solidão, não traiu a Verdade. Lutou contra o erro com todas as potências de sua genialidade. Segundo Staffa, “Santo Tomás construiu, demonstrou e fortaleceu para sempre a unidade total, essencial e orgânica do pensamento cristão”3. Renhimento hercúleo contra o espírito pagão que invadia a sociedade do século XIII e que lhe diminuiu o tempo de vida, exaurindo-lhe as forças. Porque ele inquiriu a Verdade e esta não tem pátria e é eterna. Não obstante ter Santo Tomás elaborado suas idéias no Ocidente, o tomismo goza de uma universalidade marcante e se faz um ponto de confluência entre Oriente e Ocidente, como patenteou o papa da unidade, João XXIII.4

A doutrina de Santo Tomás apresenta pontos básicos de extraordinário alcance. À inteligência humana cabe revelar os preâmbulos da fé, fundamentando os dogmas, isto é, ostentando que não há absurdo nos mistérios cridos, os quais fazem ver uma lógica intrínseca, embora sejam inatingíveis pelo intelecto criado. Com rara exatidão, as expressões de Santo Tomás ilustram as verdades bíblicas da Trindade, da Encarnação e da Presença real eucarística. A autonomia da Filosofia é claramente defendida. O princípio de individuação é a materia signata quantitae. A analogicidade do ser é estabelecida como um divisor de águas entre a teologia e a metafísica, e, deste modo, esta é dependente daquela. O termo ser aplicado à criatura se tem o significado parecido com o conceito ser referido a Deus, na realidade, tem conotação completamente diferente, não idêntica. A teoria da abstração da idéia impede qualquer barreira entre o cognoscente e o conhecimento. O conhecimento é um “ato vital”. Por sua qüididade está no ser, fora do que conhece. Entes dotados de certo grau de imaterialidade podem apreender o que é cognoscível e formar em si uma imagem do mesmo. Ao conhecer, o sujeito gera um termo mental. Atinge o objeto na medida e modo em que este está nesta species expressa. Há a primazia da razão sobre a vontade e na visão contemplativa da essência divina, além tempo, consistirá a perene do homem. Este possui um espírito e, por isto, é imortal. O constitutivo formal da pessoa humana é a união substancial entre a alma e o corpo. O homem é uma substância espiritual na carne. Ao operar racionalmente, o homem é virtuoso. É mister que ele acate a ordem fixada pelo Criador, aceitando a organização finalista do universo. A providência de Deus é o governo do mundo e, livremente, o ser racional deve se submeter ao Legislador Supremo. Pela lei natural o matrimônio é indissolúvel. A liberdade supõe o direito à propriedade. O bem comum é o fim do Estado que é regido pela norma moral inscrita por Deus na consciência humana. Pelas “cinco vias” Santo Tomás prova magistralmente a existência de Deus. Com notável clareza ele expõe a prova extraída do movimento, partindo do pressuposto de que “tudo o que se move é movido por outra coisa”. Raciocina o Aquinate: “se aquilo pelo qual é movido por sua vez se move, é preciso que também ele seja movido por outra coisa e esta por outra. Mas não é possível continuar ao infinito; do contrário, não haveria um primeiro motor e nem mesmo os outros motores moveriam como, por exemplo, o bastão não move se não movido pela mão. Portanto, é preciso chegar a um primeiro motor que não seja movido por nenhum outro, e por este todos entendem Deus”..5 Este é causa primeira universal. Eis o que diz a Suma Teológica: “Constatamos no mundo sensível a existência de causas eficientes. É, entretanto, impossível que uma coisa seja sua própria causa eficiente, porque, se assim fosse, esta coisa existiria antes de existir, o que não tem nenhum sentido. Ora, não é possível proceder até o infinito na série de causas eficientes, porque, em qualquer série de causas ordenadas, a primeira é causa intermediária e esta causa da última, quer haja uma ou várias causas intermediárias. ‑ Com efeito, se suprimirdes a causa, fareis desaparecer o efeito: portanto, se não há causa primeira, não haverá nem última, nem intermediária. Ora, se fosse regredir até o infinito dentro da série de causas eficientes, não haveria causa primeira, e assim não haveria também nem efeito, nem causas intermediárias, o que é evidentemente falso. Portanto, é preciso por necessidade, colocar uma causa primeira que todo o mundo chama Deus”.6 Em seguida vem a prova pela contingência. Eis como Josef de Vries a resume: “A prova cosmológica, baseando-se no nascimento e no desaparecimento das coisas, conclui a contingência das mesmas, e partindo da mutabilidade própria também dos elementos constitutivos fundamentais cuja origem não podem ser mostrada experimentalmente, infere sua natureza também contingente, provando dessa maneira que o mundo todo é causado por um Criador Supramundano”.7 Este é o Ser Necessário, que existe por sua própria natureza e não pode nunca deixar de existir. A prova pelos graus dos seres é assim enunciada por Santo Tomás: “Constatamos que alguns seres são mais ou menos verdadeiros, mais ou menos bons, etc. Ora, diz-se o mais e o menos de coisas diversas segundo a sua aproximação diferente de um máximo. Existe, pois, alguma coisa que é o mais verdadeiro, o melhor e, por conseguinte, o mais ser. Ora, o que é o máximo num gênero é a causa de tudo que pertence a este gênero. Existe, portanto, um ser que é para todos os outros causa de ser, de bondade e de toda a perfeição, e este ser é Deus”.8 A última das cinco provas, o Aquinatense a busca na ordenação teleológica do cosmos. Jolivet a sintetiza deste modo: “No conjunto das coisas naturais constatamos uma ordem regular e estável. Ora, toda ordem exige uma causa inteligente, que adapta os meios aos fins e os elementos ao bem do todo. Portanto, a ordem do mundo é o que há de uma Inteligência ordenadora, transcendente a todo o universo”.9 Este Ordenador é Deus.

O tomismo no início do século XX revelou toda sua pujança. Filósofos talentosos e nas mais variadas nações, embasados em Santo Tomás, ofereceram à Filosofia e à Teologia obras-primas. Estas indicam como a mente humana, sob inspiração do Aquinate, está apta a alçar vôos sublimes na investigação da Verdade e na procura de soluções às fundas indagações de um ser insaciável em suas pesquisas.

 Sertilanges, Maritain, Gilson, Garrigou-Lagrange, De Finance, Caturelli foram alguns, entre muitos, que manifestaram, a presença vigorosa do tomismo no último século.

A vitalidade do tomismo que o Congresso Mundial de Filosofia Cristã, realizado em Córdoba, na Argentina, em outubro de 1979, fez ver, é uma das esperanças de que o intelectual cristão, escudado em Santo Tomás, tem como obstaculizar a marcha de filosofias espúrias, conducentes ao materialismo ateu.

Chesterton afirmou: “Neste momento atual, tão pouco esperançoso, não há homens tão esperançosos como aqueles que consideram agora Santo Tomás como guia em uma centena de perguntas angustiosas respeitante às artes, à propriedade e à ética econômica. Há, inegavelmente, um tomismo esperançoso e criador em nossa época”.10 É também deste autor frase lapidar: “Que o tomismo seja a filosofia do bom senso, o mesmo bom senso o proclama”.11 Aliás, a citada Suma Teológica com a ordenada disposição de suas três partes, com trinta e oito tratados, seiscentos e oitenta e uma questões, três mil artigos e dez mil objeções deixa a impressão de um venturoso andar por uma floresta, na serenidade de uma aurora, na qual o murmúrio das fontes, o canto dos pássaros e as notas de todos os pensadores anteriores formam uma só voz. O maior equívoco é julgar que um tomista entende as assertivas de Santo Tomás como algo estático. Ao seu seguidor está reservada tarefa maior do que simplesmente fazer comentários do que ele expôs e glosar-lhe teses intocáveis. De acordo com suas afirmativas, dinamicamente analisadas, surgem as interpretações originais, clarificando todos os valores e conclusões aceitáveis da gnosiologia, da psicologia, da cosmologia, da metafísica, da ética, da estética, do direito, da política, da sociologia, da economia, das ciências positivas, da teologia.

Cumpre, através de uma reflexão profícua, atinar com o que está latente no que nos legou o Aquinatense, explorando o valioso conteúdo, condensado em suas luminosas sentenças, prenhes de mensagens, que clarejam um novo contexto. Vicissitudes específicas do agora. Precisa a observação de Dino Staffa: “Nenhuma das maravilhosas conquistas da ciência física são inconciliáveis com a doutrina tomista, senão que a integram e iluminam”.12 Há, realmente, uma perfeita compatibilidade entre os ensinamentos de Santo Tomás e as descobertas científicas hodiernas. Além disto, como aponta o neotomista Fernando Arruda Campos, o tomismo “encontra-se aberto a um constante e proveitoso diálogo com todas as formas do pensamento moderno e atual que lhe permite um aprofundamento constante e sucessivo de sua doutrina e um repensamento de suas teses fundamentais”.13 Jean Ladrière sabiamente declarou: “A atualidade do pensamento de Santo Tomás de Aquino é a presença contínua de uma força inspiradora capaz de assumir, em suas figuras cambiantes, o destino da razão, a consciência que ela tomou de suas conquistas como de seus limites, o pressentimento que ela traz consigo daquilo que lhe pode dar absolutamente seu sentido”.14 Wolfgnag Kluxen situou, com rara felicidade, a posição do tomismo, ao escrever que este “não é a última palavra da razão e isto segundo seus próprios princípios. Basta, porém, que seja uma palavra real, séria, verdadeira; e, como tal, ele permanecerá sempre atual, contemporâneo a todas as épocas”.15

O reencontro da juventude universitária com Santo Tomás significa, de fato, libertação e uma renovação cultural forte, levando àquele posicionamento que obvia desvios funestos que aviltam o homem, por o afastarem para longe Ente Supremo que Tomás de Aquino amou, porque profundamente O conheceu.16