O centenário da Encíclica
Aeterni Patris, de Leão XIII, em 1979, na qual o imortal Pontífice fala
sobre a Filosofia Cristã, fez brilhar, ainda uma vez, a figura inigualável
de Santo Tomás de Aquino e mostrou o vigor do tomismo no século passado.
Santo Tomás de Aquino
impôs-se sempre pela sua santidade e sua sabedoria. Repleto de grande
sapiência, pois o que há de mais excelso nos seus escritos é fruto da
contemplação do Deus no qual vivia imerso. A maior parte de sua vida, a
passou Santo Tomás num colóquio ininterrupto com o Ser Supremo.
Contemplata aliis tradere ‑ transmitir o que foi buscado no mundo
sobrenatural, é bem o que se deu com o “doutor comum”.
Foi chamado doutor angélico,
porque anjo pela pureza de sua vida e por possuir uma intuição angelical.
O. Wilmam compara a
inteligência de Santo Tomás com a “ondulação de um lago, que recolhe todas
as águas que chegam de diversas partes e deixa cair ao fundo o que estas
arrastam em sua corrente, de forma que a superfície das águas formem um
espelho claro e tranqüilo no qual reflete o formoso azul do céu”.1
Os seus contemporâneos ficavam admirados por verificar que Tomás de Aquino
nunca perdia tempo. Sua conversação era sem cessar sobre o que dizia
respeito a Deus e se, porventura, algum companheiro de claustro ventilava
outros temas, ele se esquivava delicadamente e se punha a caminhar a sós,
refletindo, meditando.
A Suma Teológica foi o
resultado mais precioso de suas elocubrações profundas, constituindo as suas
obras um sistema coerente e o que melhor se produziu para expressar o
pensamento cristão global e em sua mais genuína beleza. Os papas e os
concílios recomendaram-no como o Mestre seguro e a ser seguido, sendo a
Encíclica de Leão XIII, de 1879, a consagração definitiva da sua segurança
doutrinal. Eis um texto deste documento: “De espírito aberto e penetrante,
de memória fácil e segura, de perfeita integridade de costumes, não tendo
outro amor senão o da verdade, riquíssimo de ciência tanto divina quanto
humana, justamente comparado ao sol, ele aqueceu a terra pela irradiação das
suas virtudes e encheu-a do esplendor de sua doutrina”.2
Muitas vezes se esquece,
porém, que a evolução cultural de Santo Tomás se deu por entre formidáveis
controvérsias e paixões. Ele não tergiversou e venceu a dúvida, superou a
solidão, não traiu a Verdade. Lutou contra o erro com todas as potências de
sua genialidade. Segundo Staffa, “Santo Tomás construiu, demonstrou e
fortaleceu para sempre a unidade total, essencial e orgânica do pensamento
cristão”3. Renhimento hercúleo contra o espírito pagão que
invadia a sociedade do século XIII e que lhe diminuiu o tempo de vida,
exaurindo-lhe as forças. Porque ele inquiriu a Verdade e esta não tem pátria
e é eterna. Não obstante ter Santo Tomás elaborado suas idéias no Ocidente,
o tomismo goza de uma universalidade marcante e se faz um ponto de
confluência entre Oriente e Ocidente, como patenteou o papa da unidade, João
XXIII.4
A doutrina de Santo Tomás
apresenta pontos básicos de extraordinário alcance. À inteligência humana
cabe revelar os preâmbulos da fé, fundamentando os dogmas, isto é,
ostentando que não há absurdo nos mistérios cridos, os quais fazem ver uma
lógica intrínseca, embora sejam inatingíveis pelo intelecto criado. Com rara
exatidão, as expressões de Santo Tomás ilustram as verdades bíblicas da
Trindade, da Encarnação e da Presença real eucarística. A autonomia da
Filosofia é claramente defendida. O princípio de individuação é a materia
signata quantitae. A analogicidade do ser é estabelecida como um divisor
de águas entre a teologia e a metafísica, e, deste modo, esta é dependente
daquela. O termo ser aplicado à criatura se tem o significado
parecido com o conceito ser referido a Deus, na realidade, tem
conotação completamente diferente, não idêntica. A teoria da abstração da
idéia impede qualquer barreira entre o cognoscente e o conhecimento. O
conhecimento é um “ato vital”. Por sua qüididade está no ser, fora do que
conhece. Entes dotados de certo grau de imaterialidade podem apreender o que
é cognoscível e formar em si uma imagem do mesmo. Ao conhecer, o sujeito
gera um termo mental. Atinge o objeto na medida e modo em que este está
nesta species expressa. Há a primazia da razão sobre a vontade e na
visão contemplativa da essência divina, além tempo, consistirá a perene do
homem. Este possui um espírito e, por isto, é imortal. O constitutivo formal
da pessoa humana é a união substancial entre a alma e o corpo. O homem é uma
substância espiritual na carne. Ao operar racionalmente, o homem é virtuoso.
É mister que ele acate a ordem fixada pelo Criador, aceitando a organização
finalista do universo. A providência de Deus é o governo do mundo e,
livremente, o ser racional deve se submeter ao Legislador Supremo. Pela lei
natural o matrimônio é indissolúvel. A liberdade supõe o direito à
propriedade. O bem comum é o fim do Estado que é regido pela norma moral
inscrita por Deus na consciência humana. Pelas “cinco vias” Santo Tomás
prova magistralmente a existência de Deus. Com notável clareza ele expõe a
prova extraída do movimento, partindo do pressuposto de que “tudo o
que se move é movido por outra coisa”. Raciocina o Aquinate: “se aquilo pelo
qual é movido por sua vez se move, é preciso que também ele seja movido por
outra coisa e esta por outra. Mas não é possível continuar ao infinito; do
contrário, não haveria um primeiro motor e nem mesmo os outros motores
moveriam como, por exemplo, o bastão não move se não movido pela mão.
Portanto, é preciso chegar a um primeiro motor que não seja movido por
nenhum outro, e por este todos entendem Deus”..5 Este é causa
primeira universal. Eis o que diz a Suma Teológica: “Constatamos no
mundo sensível a existência de causas eficientes. É, entretanto, impossível
que uma coisa seja sua própria causa eficiente, porque, se assim fosse, esta
coisa existiria antes de existir, o que não tem nenhum sentido. Ora, não é
possível proceder até o infinito na série de causas eficientes, porque, em
qualquer série de causas ordenadas, a primeira é causa intermediária e esta
causa da última, quer haja uma ou várias causas intermediárias. ‑ Com
efeito, se suprimirdes a causa, fareis desaparecer o efeito: portanto, se
não há causa primeira, não haverá nem última, nem intermediária. Ora, se
fosse regredir até o infinito dentro da série de causas eficientes, não
haveria causa primeira, e assim não haveria também nem efeito, nem causas
intermediárias, o que é evidentemente falso. Portanto, é preciso por
necessidade, colocar uma causa primeira que todo o mundo chama Deus”.6
Em seguida vem a prova pela contingência. Eis como Josef de Vries a
resume: “A prova cosmológica, baseando-se no nascimento e no desaparecimento
das coisas, conclui a contingência das mesmas, e partindo da mutabilidade
própria também dos elementos constitutivos fundamentais cuja origem não
podem ser mostrada experimentalmente, infere sua natureza também
contingente, provando dessa maneira que o mundo todo é causado por um
Criador Supramundano”.7 Este é o Ser Necessário, que existe por
sua própria natureza e não pode nunca deixar de existir. A prova pelos
graus dos seres é assim enunciada por Santo Tomás: “Constatamos que
alguns seres são mais ou menos verdadeiros, mais ou menos bons, etc. Ora,
diz-se o mais e o menos de coisas diversas segundo a sua aproximação
diferente de um máximo. Existe, pois, alguma coisa que é o mais verdadeiro,
o melhor e, por conseguinte, o mais ser. Ora, o que é o máximo num gênero é
a causa de tudo que pertence a este gênero. Existe, portanto, um ser que é
para todos os outros causa de ser, de bondade e de toda a perfeição, e este
ser é Deus”.8 A última das cinco provas, o Aquinatense a busca na
ordenação teleológica do cosmos. Jolivet a sintetiza deste modo: “No
conjunto das coisas naturais constatamos uma ordem regular e estável. Ora,
toda ordem exige uma causa inteligente, que adapta os meios aos fins e os
elementos ao bem do todo. Portanto, a ordem do mundo é o que há de uma
Inteligência ordenadora, transcendente a todo o universo”.9 Este
Ordenador é Deus.
O tomismo no início do
século XX revelou toda sua pujança. Filósofos talentosos e nas mais variadas
nações, embasados em Santo Tomás, ofereceram à Filosofia e à Teologia
obras-primas. Estas indicam como a mente humana, sob inspiração do Aquinate,
está apta a alçar vôos sublimes na investigação da Verdade e na procura de
soluções às fundas indagações de um ser insaciável em suas pesquisas.
Sertilanges, Maritain,
Gilson, Garrigou-Lagrange, De Finance, Caturelli foram alguns, entre muitos,
que manifestaram, a presença vigorosa do tomismo no último século.
A vitalidade do tomismo que
o Congresso Mundial de Filosofia Cristã, realizado em Córdoba, na Argentina,
em outubro de 1979, fez ver, é uma das esperanças de que o intelectual
cristão, escudado em Santo Tomás, tem como obstaculizar a marcha de
filosofias espúrias, conducentes ao materialismo ateu.
Chesterton afirmou: “Neste
momento atual, tão pouco esperançoso, não há homens tão esperançosos como
aqueles que consideram agora Santo Tomás como guia em uma centena de
perguntas angustiosas respeitante às artes, à propriedade e à ética
econômica. Há, inegavelmente, um tomismo esperançoso e criador em nossa
época”.10 É também deste autor frase lapidar: “Que o tomismo seja
a filosofia do bom senso, o mesmo bom senso o proclama”.11 Aliás,
a citada Suma Teológica com a ordenada disposição de suas três partes, com
trinta e oito tratados, seiscentos e oitenta e uma questões, três mil
artigos e dez mil objeções deixa a impressão de um venturoso andar por uma
floresta, na serenidade de uma aurora, na qual o murmúrio das fontes, o
canto dos pássaros e as notas de todos os pensadores anteriores formam uma
só voz. O maior equívoco é julgar que um tomista entende as assertivas de
Santo Tomás como algo estático. Ao seu seguidor está reservada tarefa maior
do que simplesmente fazer comentários do que ele expôs e glosar-lhe teses
intocáveis. De acordo com suas afirmativas, dinamicamente analisadas, surgem
as interpretações originais, clarificando todos os valores e conclusões
aceitáveis da gnosiologia, da psicologia, da cosmologia, da metafísica, da
ética, da estética, do direito, da política, da sociologia, da economia, das
ciências positivas, da teologia.
Cumpre, através de uma
reflexão profícua, atinar com o que está latente no que nos legou o
Aquinatense, explorando o valioso conteúdo, condensado em suas luminosas
sentenças, prenhes de mensagens, que clarejam um novo contexto. Vicissitudes
específicas do agora. Precisa a observação de Dino Staffa: “Nenhuma das
maravilhosas conquistas da ciência física são inconciliáveis com a doutrina
tomista, senão que a integram e iluminam”.12 Há, realmente, uma
perfeita compatibilidade entre os ensinamentos de Santo Tomás e as
descobertas científicas hodiernas. Além disto, como aponta o neotomista
Fernando Arruda Campos, o tomismo “encontra-se aberto a um constante e
proveitoso diálogo com todas as formas do pensamento moderno e atual que lhe
permite um aprofundamento constante e sucessivo de sua doutrina e um
repensamento de suas teses fundamentais”.13 Jean Ladrière
sabiamente declarou: “A atualidade do pensamento de Santo Tomás de Aquino é
a presença contínua de uma força inspiradora capaz de assumir, em suas
figuras cambiantes, o destino da razão, a consciência que ela tomou de suas
conquistas como de seus limites, o pressentimento que ela traz consigo
daquilo que lhe pode dar absolutamente seu sentido”.14 Wolfgnag
Kluxen situou, com rara felicidade, a posição do tomismo, ao escrever que
este “não é a última palavra da razão e isto segundo seus próprios
princípios. Basta, porém, que seja uma palavra real, séria, verdadeira; e,
como tal, ele permanecerá sempre atual, contemporâneo a todas as épocas”.15
O reencontro da juventude
universitária com Santo Tomás significa, de fato, libertação e uma renovação
cultural forte, levando àquele posicionamento que obvia desvios funestos que
aviltam o homem, por o afastarem para longe Ente Supremo que Tomás de Aquino
amou, porque profundamente O conheceu.16