A Universidade a Luz da Filosofia Cristã I

Por Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho

 

Introdução

O objetivo deste capítulo é enfocar a Universidade hoje, segundo os valores evangélicos que permitam uma orientação que obvie as funestas distorções conducentes a uma neo-escravização do ser racional, as quais impedem uma ordem que favoreça o desenvolvimento integral do homem, nem propiciam condições para que ele se situe no mundo a fim de, com  seu agir e operar, transformá-lo, humanizando-o.

O pensador cristão tem uma tarefa específica na sociedade, donde ser urgente que ele se conscientize de sua missão no que tange à elaboração de um projeto para um novo contexto histórico.

O impacto tecnológico exige uma retomada dos princípios que embasam a autêntica dignidade da pessoa humana, postergada em função de bens materiais. Uma reavaliação ontológica do homem é que se impõe e um crédito nas suas possibilidades. Vancourt cita Heidegger que, na obra Kant e o problema da metafísica, afirma: “Nenhuma época acumulou sobre o homem conhecimentos tão numerosos e tão diversos como a nossa. Mas também nenhuma época soube menos o que é homem”.1

A filosofia Cristã, além de estabelecer os fundamentos metafísicos da pessoa humana, leva o homem a aderir às realidades últimas, o que imprime ritmo a uma existência que visualiza uma meta: porvir em construção.

Tudo isto conseqüências imediatas para a organização universitária, à qual fazer entrever opções que ensejem a plena humanização do meio no qual o homem atua.

 

O papel do intelectual cristão

Muito se discute qual seja o lídimo múnus do intelectual.

Francis Bacon2 lançou uma idéia cuja aplicação utilitária suscita uma posição profundamente danosa e que desvirtua a incumbência daquele que é culto. Conforme o filósofo inglês o conhecimento implica em poder. Sob este prisma a cultura estaria a serviço da superioridade nacional e sob o jugo de ideologias. Não poderia, portanto, jamais conduzir o magno empreendimento a que os mais talentosos são realmente chamado. A Universidade estaria atrelada a estruturas político-econômicas e o poder tecnológico arrastaria a um endeusamento das ciências que mais diretamente proporcionam domínio econômico do universo e daí levaria à supervalorização da máquina.

Sócrates opõe-se diametralmente a Bacon. Para o filósofo grego a sabedoria se liga à virtude (areté)3. Platão e Aristóteles desenvolveram este pensamento e almejaram atingir a Verdade, o Belo, o Bem. Ideal válido, sem dúvida, mas vago, pouco operativo, posicionamento por demais intelectualista, que aliena do concreto, o que não se coaduna com uma situação funcional e realistica.

Outros julgam ser encargo do sábio, através do emprego do método científico, sujeitar não apenas o setor não-humano, mas ainda o humano. Assim raciocinam: que adianta ao homem poder controlar o átomo, percorrer fantásticas distâncias no espaço sideral, subjugar a natureza biológica, se ele não sabe como controlar suas paixões, suas angústias, suas fobias, seus conflitos. Opinião ponderável, mas lacunosa, pois omite o aspecto social do problema que resta, assim, mal equacionado.

A visão correta do ofício especial de quem se dedica à cultura flui de uma maneira democrática de conceber a educação e o ensino, firmada na filosofia cristã que leva a uma formação humanística, voltada para o praticável. O homem, cônscio de seu valor, preparado para o exercício autônomo e criativo de suas ações sociais. Serviço universal no qual não obstaculiza nem a ciência, nem a técnica. Como, porém, de si, nem uma, nem outra podem estruturar a práxis, elas são apenas direcionadas para uma sociedade, de fato, humana dentro de uma perspectiva antropológica que habilita para a organização de uma genuína comunidade. Isto decorre de uma concepção cristã do homem.

 

Visão cristã do homem

A dignidade da pessoa humana

Os maiores filósofos da antigüidade não tiveram uma exata imagem do homem. Acidente de uma idéia eterna para Platão, membro de uma espécie para Aristóteles, o sentido perfeito de pessoa humana era-lhes impossível. Predomina na mentalidade grega o indivíduo. No pensamento filosófico cristão, como fruto opimo doutrina pregada por Cristo, surgiu a conceituação precisa da pessoa humana. Como mostra Louis Lavelle, “com o cristianismo tudo muda. A consideração do ser é substituída pela de pessoa”.4 Daí corolários muito bem sintetizados por Jean Mourroux: “como espírito que enforma um corpo, a pessoa segue as condições da criatura espiritual: exprime relação direta a Deus e ultrapassa a espécie feita para ela”.5 Donde resulta que a pessoa humana não pode ser absorvida no coletivo, nem estar sob qualquer pressão externa que induz, de modo subliminar, um modus vivendi. Toda ordem econômica deve estar em sua órbita, sendo inconcebível um ser dotado de alma sujeito ao que é material. É todo um posicionamento que cumpre seja revisto. Seu valor extraordinário, a Pessoa não o recebe nem de sua família, nem de sua fortuna. Todo homem vale por si mesmo, seja qual for sua origem ou condição social. O que interessa é o estar-bem no mundo e não o bem-estar outorgado pelo mundo. O bem-estar identifica-se com algo passageiro, efêmero, temporâneo, propiciado por um conforto exterior. O estar-bem é um valor permanente, instalado dentro de cada um e independe do meio físico, das coisas perecíveis. O bem-estar pode ser conseguido com dinheiro, o estar-bem só se obtém com a reflexão. O bem-estar lisonjeia a carne, o estar-bem inebria o espírito. Para o bem-estar é o lugar que faz o homem, para o estar-bem é o homem quem faz o lugar. O bem-estar consome bens, o estar-bem espalha valores. O bem-estar é um compromisso com o corpo, o estar-bem é uma obrigação com a alma. Para o bem-estar é preciso que haja energia que passem pelos circuitos corporais, para o estar-bem as forças passam pelas vias espirituais. Bem-estar é ter, estar-bem é ser e viver. Com efeito, ser e viver é estar-bem com a consciência, voz que fala no âmago de cada um; com Deus no qual tudo está imerso; com os outros que estão do outro lado da porta e batem sequiosos daquela riqueza que cada um pode intuir, quando, colocando entre parênteses o mundo sensível, depara, pela razão, o Bem, a Verdade, o Belo.

Estar-bem é possuir e vivenciar tudo isto. Valores buscados pela mente que abre regiões interiores que se iluminam e se exteriorizam em comportamentos que edificam. Aliás, pertinente o dito socrático, “vida sem reflexão não merece ser vivida”.

É a procura do aperfeiçoamento do próprio ser no pensar, no querer, no sentir e no operar. É o crescimento do todo do ser racional em todas as suas dimensões. O ato de valorar tem influições transordinárias, uma vez que pode fazer ver aos outros a bondade, a verdade, o amor. Os valores que moram no coração são atemporais e, por isto, sua base está na categoria do que valem e, assim, justamente por valerem é que trazem benefícios práticos e existenciais. Nem todos os conhecem, vivem e intuem.

É mister descobri-los lá no íntimo pela via da contemplação, isto leva a dar uma orientação à vida e conduz à venturosa atuação que redunda na autoformação. Donde a eutimia, vida plenificada, conjuntura prevista por São Paulo6 de sucesso total e gratificante. Cristo falou claramente: “O homem bom, do bom tesouro de seu coração tira o bem”7 e o bem no dizer de Santo Tomás de Aquino, é de si difusivo. Eis porque Jacques Maritain sentenciou com razão: “a procura da felicidade na terra é a procura não das vantagens materiais, porém da retidão moral, do vigor e perfeição da alma, com condições materiais e sociais que isto implica”.8 É que o homem está no mundo, mas não está nele contramurado. Tem um destino transcendente. Nossa era, porém, tende a despersonalizar, a desumanizar, a desespiritualizar o homem, pois as estruturas para as quais, como suporte, estão poderosos meios de comunicação, manipulam, massificam. Assim, mentalizar o homem de sua importância ontológica é obra educacional inadiável que resulta na preservação dos bens sobrenaturais. É esta colocação metafísica da natureza da pessoa humana, tal como a apresenta a filosofia cristã, a única capaz de sustentar a valia do ser humano em todos os setores.