A Universidade a Luz da Filosofia Cristã II

Por Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho

 

O homem inserido na história

Diante deste modo de ver a pessoa humana, surge esta realidade: enquanto corpo, está o homem na esfera do tempo; espírito, o cronos é sua história. Há no mais profundo de cada homem uma tensão, porque possui um viver que lhe exige uma decisão para realizar a plenitude de seu ser. Segundo Lima Vaz, “é a historicidade da consciência que permite a projeção de um sentido histórico ou inteligilidade histórica na experiência temporal do ser”.9 Aí, exatamente, o papel da educação que é o processo pelo qual se organiza o homem como ser histórico. Creuza Capalbo escreveu que “educação não é uma obra já feita mas a ser feita”.10 Não é a existência em si, mas como deve ser. O homem é chamado, no decorrer de sua vida, a alcançar perfeição crescente, sendo o progresso pessoal uma sucessão ininterrupta de esforços para esta meta da autoperfeição. De fato, o homem pode sempre se aprimorar. Está colocado entre o que foi e o porvir. O instante presente está prenhe do passado e refletirá irreversivelmente no futuro. Bernard Häring assegura: “a herança do passado (herança biológica, cultural, ético-religiosa) representa a trama já tecida e a tecer ainda, a qual solicita agora a liberdade humana”.11 O livre arbítrio está empenhado num fado histórico. É esta a conclusão de Lapassade12 na sua tese na qual vislumbra o homem como um ser inacabado, revelando como, por ser temporal, sua educação é a primeira maneira para administrar a temporalidade vivida, para que seja completa e autenticamente significativa. Dotado de liberdade, ele pode atuar sobre a sua vida pretérita. Dá rotas à sua história. O que virá depende precisamente deste procedimento. Cada um é responsável pelo que há de lhe advir. Eis por que a cada momento se constrói o futuro. Cada decisão em direção ao bem influencia positivamente opções seguintes. O inverso se dá quando a metodologia empregada negou valores, pois isto representa acumular obstáculos. É apanágio do homem poder, por nova modalidade de pensar, influir no que lhe aconteceu. Isto vai depender das inspirações que dirigem seus anseios, sua captação de respostas às suas inquietantes perquirições. Deste modo, ele refaz posições anteriores e imprime segura marcha para frente. Por ser livre, cada um é senhor de sua sina, mas o uso desta prerrogativa está ligado a todo um conjunto de atitudes educacionais. Graças à alma, transcende o tempo. Impõe-se-lhe então tome consciência deste privilégio para dirigir com êxito o desenrolar de sua passagem terrena.

A Filosofia Cristã leva, assim, cada um ao contato com as questões escatológicas. É a solução à indagação incoercível: qual o fim de todo este processo? Cada módulo existencial ganha proporções que transpõem a contagem temporal. Há, portanto, um necessário liame com Aquele que É. Isto dá uma conotação peculiar à educação e informa in totum o comportamento, evitando tergiversações ante a ambivalência conatural perante o bem e o mal. Percebe-se que no apogeu do fenômeno histórico, quando Thanatos significará um aprimoramento ontológico, será no ritmo de uma vivência plena que cada um constatará que sua trajetória individual foi uma consumação feliz, porque Eros foi transfigurado através de Ágape, direcionado para riqueza mais alta.

 

Concepção cristã da universidade

Dentro deste prisma, a Universidade deve quebrar a divisão entre escolas humanistas e escolas técnicas, segmentação antidemocrática, que faz com que apareça estruturação em castas herméticas e hierarquizadas, e anti-social por impedir a muitos uma luz superior que salva, unifica, liberta e penhora um agir comunitário humanista. No caso desta dicotomia a Universidade não teria um sustentáculo viável que adestrasse aqueles que estejam aptos a orientar e a guiar, “homens de grande saber, preparados para enfrentarem tarefas de maior responsabilidade na sociedade...”.13 Trairia sua vocação educativa. Todas as vezes que isto ocorre, há um exclusivismo mutilador com o risco do predomínio do cientismo e surgem agressões tecnológicas. É que, quando há tal separação, o universitário é levado “a uma forma sofisticada de incultura e barbárie intelectual que é a especialização ciosamente fechada em seu próprio domínio”.14 Adolpho Crippa diagnosticou com precisão este ângulo, demonstrando que a Universidade precisa voltar a ser laboratório de humanismo: “É a partir de uma idéia exata e comum do Homem que as atividades universitárias recebem unidade e justificação. Fora do mundo criado por uma coerente do homem teremos multi-universidade ou di-versidade, jamais uni-versidade. A unidade deve nascer de um único foco iluminador, de uma fonte doadora de sentido. Somente o humanismo pode ser este foco e esta fonte”.15 Maritain que aponta como objetivo da Universidade “complementar a formação da juventude, conduzindo ao seu termo a aquisição da força e maturidade do raciocínio e das virtudes intelectuais”16, advoga este humanismo, patenteando que “a educação tem essência e finalidade próprias. Essa essência e estas finalidades se relacionam com a formação do homem e a libertação interior da pessoa humana e devem ser mantidas, quaisquer que seja as tarefas impostas”.17

Cabe à Universidade, de fato, nortear, harmonizando a ciência e a educação. Ainda agora, no dia 17 de outubro, o Editorial de La Nacion18, lançava de Buenos Aires um repúdio ao “homo tecnocraticus” e evidenciava que as Faculdades não podem apenas “preparar homens que fazem”. Os estudantes, apregoa este Editorial, devem deixar de serem “facultativos” para se tornarem “universitários”, homens que percebam problemas totais ainda que encargo seja a decisão sobre facetas parciais. Mais de uma vez se tem dito que os dirigentes devem sair das universidades. No atual governo britânico, 17 de seus 22 componentes são graduados em Oxford e Cambridge.

Eis por que é essencial que a Universidade cresça horizontal e verticalmente. Que focalize o homem em sua totalidade e unidade, isto é, “em sua inteireza ontológica, sujeito de ciência e consciência, de cultura e civilização, de trabalho e produção, de esperança e fé, de tempo e eternidade”.19 Expressivo o ensinamento do Papa Pio XI: “o assunto educação é o homem global e inteiro, alma unida ao corpo em unidade de natureza, com todas as suas faculdades naturais, tal como a razão justa e a revelação lhe mostraram que fosse ...”20. Otávio Nicolás Derisi, com propriedade, denuncia que “tal foi o desvio fundamental da Universidade e, em geral, da educação na idade moderna: haver cultivado unilateralmente a profissão e a investigação, mas não havê-lo feito sobre a base de uma cultura autêntica integralmente humana, no sentido do desenvolvimento harmônico e total de todo o homem, na tríplice dimensão espiritual que constitui o âmbito de seu mundo humano e pessoal; haver preparado para a ciência, para a profissão, mas não haver preparado para a vida...”.21 Trata-se de apoiar “o desabrochar e o desenvolvimento do todo do homem em todas as suas dimensões”22 e é a Filosofia Cristã que entrevê a pessoa humana em sua uniformidade. Ora, também o universitário tem direito a esta educação integral, porque o homem é um ser inacabado, aperfeiçoável, perfectível que até o último sopro de vida está numa “metabléica” constante. Citando E. Bloch, Pierre Furter opina que a “educação é necessária porque o homem é um “ser de carência”23. Não há marca de chegada à maturação, pois a caminhada é diuturna até o momento final da permanência fora da eternidade. Se assim é, a formação científica não pode estar dissociada nunca da humanística, sob pena de haver uma desintegração com a prevalência do material sobre o espiritual, perdendo-se o significado, a diretriz histórica, o senso da existência. É, pois, imprescindível o ensino da iniciação filosófica, da história das idéias, da antropologia cultural, ministradas em consonância com as matérias especializadas.

Apenas a Universidade, que tem tal percepção, realiza seu múnus, encarnando, de fato, a cultura de um povo. Forma aqueles que fixam as novas veredas que ensejam a humanidade a obstar os males a serem urgentemente atalhados, os quais já mancham inditosamente uma fase da História, mas cujos reflexos se podem antever ainda mais terríveis nos campos físicos e morais. Missão libertadora que se compromete a uma atividade efetiva na certeza de que não basta SER, é preciso VIVER.