Filosofia da Amizade

Por Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho

 

No conturbado mundo de hoje a ausência da amizade é uma das causas de inúmeros males. É este laço sagrado que une os corações. Quirógrafo das almas nobres, é a afeição que fundamenta o lídimo amor, sendo este a própria amizade em maior intensidade. Houvesse tal sentimento e muitos lares não se desfariam. É ele que cimenta o relacionamento profundo dentro de casa, nas escolas, nos escritórios, nas fábricas, enfim, em toda a parte. Faz com que haja respeito entre os esposos, os pais e filhos, os irmãos, os que exercem a autoridade e seus súditos, todos aqueles que as circunstâncias da vida imergiram no mistério do encontro, nas encruzilhadas das sendas desta existência terrena.

Desde a mais remota antigüidade o homem se interrogou sobre a qüididade da amizade. Filosofou sobre este aspecto da interação humana. Os pensadores gregos deixaram páginas imortais, analisando o que significa ser amigo. Podemos dizer, numa linguagem aristotélica, que a amizade é uma certa comunidade ou participação solidária de várias pessoas em atitudes, valores ou bens determinados. É uma disposição ativa e empenhadora da pessoa. Leva à empatia.

O valor da amizade foi revelado pela Escritura Sagrada: “O amigo fiel não tem preço”1, pois “ele ama em todo o tempo”2. “O amigo fiel é uma forte proteção; quem o encontrou, deparou um tesouro”3. “O amigo fiel é um bálsamo de vida e de imortalidade, e os que temem o Senhor acharão um tal amigo”4.

A função psicossocial da amizade é, assim, de rara repercussão. Ela é fator de progresso, pois o amigo digno deste nome aperfeiçoa e educa pela palavra e pelo exemplo; de segurança, uma vez que o bom e leal amigo é remédio para todas as angústias; de energia, dado que a amizade é força espiritual; de equilíbrio, porquanto desenvolve a sociabilidade e obsta o egoísmo. Entretanto, há condições para que floresça a amizade. Pode-se dizer que são seus ingredientes filosóficos: a sinceridade, a confiança, a disponibilidade, a tolerância, a compreensão e a fidelidade. Saint-Exupéry afirmou: “Es eternamente responsável por aquilo que cativas”5. Esta responsabilidade inclui as seis disposições interiores citadas.

Na plenitude dos tempos Cristo apresentou-se como legítimo amigo. Ele declarou: “Já não vos chamo servos, mas amigos”6 e acrescentou: “Ninguém dá maior prova de amor do que aquele que entrega a vida pelos amigos”7. Rodeou-se de pessoas, às quais se repletaram dos eflúvios de sua bondade. Ele tinha muito a oferecer e felizes os que O conheceram, como Lázaro, Marta, Maria, seus amigos de Betânia; os doze apóstolos; Nicodemos; Zaqueu; Dimas, o bom ladrão; e tantos outros.

É preciso levar a amizade a sério.

Baltazar Gracian asseverou: “Saber conservar os amigos é mais difícil que saber fazê-los”8. O Livro do Eclesiástico assegura que “O amigo fiel é medicina da vida e da imortalidade”9. De Cícero este célebre dito: “As verdadeiras amizades são eternas”10. Ele colocou esta questão: “Poderá haver alguma coisa mais sublime do que teres alguém com quem possas falar de coisas como se falasses contigo mesmo?”11 Gonçalves Dias cantou: “Amizade! União, virtude, encanto, consórcio do querer, de força e d’alma...”12. Contudo, é mister refletir no que disse Santo Agostinho: “A suspeita é o veneno da amizade”13. Bem pensou, porque a amizade finda onde a desconfiança começa. P. Syro proclamou que “a amizade é sempre útil”14. E que o amigo é luz que guia, é âncora em mar revolto, é arrimo a toda hora. Esparge raios de sol de alegria, derramando torrentes de clarões divinos. Dulcifica o pesar. Cumpre, porém, se ater a esta verídica reflexão de Augusto Comte: “Só os bons sentimentos podem unir, o interesse jamais firmou amizades”15. Tudo isto merece ser pensado e repensado. E que “a amizade é o vinho da vida”16, no belo conceito de Young. É essencial, todavia, ponderar sobre a receita de Emerson: “A única maneira de ter amigos é ser amigo”17 e meditar sobre o ensinamento bíblico: “Quem teme a Deus terá bons amigos, porque estes serão semelhantes a ele”18.

A vera amizade foi decantada por Cecília Preziozo, ao dizer que ela outra coisa não é senão “uma porta que se abre, uma mão estendida, um sorriso que te alenta, um olhar que te compreende, uma lágrima que se une à tua dor, uma palavra que te anima, uma crítica que te enriquece; é um abraço de perdão, um aplauso que te estimula, um encontro que te reconcilia, um favor sem recompensa, um dar sem exigir, um entregar-se sem calcular, um esperar sem cansaço”19.

Quando, de novo, a autêntica amizade reinar nesta terra, não haverá tanta animosidade, insegurança e traição. Já não existe, infelizmente, em nossos dias, o mesmo acatamento pelos amigos, sem os quais não se pode viver, como muito bem ensinou Aristóteles 20.

Esta verdadeira amizade, porém, há de se alicerçar na dileção mútua, esta vista não como sentimento a respeito dos outros, mas como comportamento respeitoso com os outros, sem exigir nada em troca 21.
 
NOTAS
 
1 Salmo 6,15.
2 Provérbios 17,17.
3 Eclesiástico 6,14.
4 Idem 6,16.
5 Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé. Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince, Paris, Librairie Gallimard, 1946, p. 74.
6 João 15,15.
7 João 15,13.
8 Baltazar Gracian. Oráculo Manual, vol. LXV, 586.
9 Eclesiástico 6,16.
10 Cícero, De amicitia 9,32.
11 Idem, Ibidem.
12 Citado por A. Tenório d’Albuquerque. Dicionário de Citações, vol. I, Rio de Janeiro, Conquista, 1962, p. 72; Pandiá Pându, Seleção de Cinco Mil Pensamentos da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Ediomo, s.d., p. 24.
13 Santo Agostinho. De amicitia, cap. XV.
14 P. Syro, citado por Arthur Resende, Phrases e Curiosidades Latinas, Rio de Janeiro, 1952, p. 32.
15 Augusto Comte. Pensées et Preceptes, 223.
16 Edward Young. Night Thoughts, 11.
17 Citado por Celso Barroso Leite, O Livro das Citações, Rio de Janeiro, Ediomo, s.d., p. 15.
18 Eclesiástico 6,17.
19 In: Imagem, Nazea 1182 C.F.
20 Amicus magis necessarius quam ignis et aqua. Cf. Aristóteles Ethic. Nicom., 8, I; 7,5; cf. Cícero. De amicitia, 6; Plutarco. Dell’adulatore et dell’amico, 5.
21 James C. Hunter. O Monge e o executivo: Uma História sobre a essência da Liderança, Rio de Janeiro, 2004, p.76 e seguintes