O equilíbrio do caráter está em íntima correlação com a harmoniosa
correspondência entre a vontade e o aparelho motor. Trata-se de sincronizar o
esforço mental e físico. O gesto é a expressão visível, não verbal de um
processo consciente. E espontâneo quando traduz um estado de espirito ou um
sentimento, como a alegria, a compaixão, o respeito, a gratidão. Flui dos nervos
o que é impulsivo, exteriorizando sensações ou reações instintivas. Assim a
fadiga, a depressão, a excitação, o desgosto, o medo, a cobiça. O livro do
Eclesiástico ostenta como “pelo semblante se conhece um homem, e pelos traços do
rosto se apreende os sábio. Seu modo de vestir-se, o riso de seus lábios, e sua
maneira de caminhar revelam o que é um homem”1.
Os Antigos captaram o significado dos reflexos corporais. Homero mostra que Ajax
identifica Netuno pelo seu modo de caminhar: “Não é Calchas, mas algum habitante
do Olimpo, que tomou a figura dele. É fácil reconhecer pelo locomover-se uma
divindade”2. Virgílio diz que Vênus, ao se apresentar a Enéias, “pela maneira de
mover-se se revelou verdadeira deusa”3.
Romano Guardini dissecou esta revelação externa através da locomoção: “E uma
arte cheia de nobreza. Ela concilia disciplina e liberdade, força e graça,
condescendência e firmeza, ardor e domínio de si mesmo. Conforme o sexo o andar
toma um ar de ligeireza ou de valentia. Ele demonstra as fadigas. Revela a
tranqüilidade reinante no íntimo”4. E que o existencial vem à tona por meio de
movimentos anatômicos. O corpo é, sem dúvida, um componente do ego. Traços
modais característicos sigilam o homem, que possui no seu constitutivo físico
partes inteligenciadas extremamente expressivas. Mouroux patenteia como “falar
do corpo é falar da alma que o estrutura. Não imaginamos o corpo e a alma como
duas coisas, mas antes como dois aspectos irredutíveis, embora reciprocamente
implicados, de um só ser real que é o homem”5.
O autodomínio consiste em reprimir manifestações impulsivas e em cultivar as
naturais. Um exemplo esclarece esta tese. O senso de reverência pede certos
procedimentos que têm como suporte o autocontrole: reserva, discrição, atenção,
amabilidade, obsequiosidade. É o self control que leva ao tratamento afável, o
qual se evidencia no semblante, nas maneiras gentis, enfim, em todo desempenho
pessoal.
A arte dos gestos é complexa, mas utilíssima, pois além de refletir o interior,
dá ao discurso oral especial luminosidade e relevo. Muito bem se diz que o gesto
é mais incisivo do que a própria palavra. E prenhe de mensagens. Tal pode ser a
capacidade individual que, através das contrações musculares produzidas pela
função motora, dirigida pela energia que promana dos espaços lá de dentro, se
transmite não apenas o essencial, como ainda as mudanças que fixam o sentido e
as alusões que o ampliam e até ultrapassam. São indícios que induzem e
fortalecem a comunicação. É o psíquico que aparece pela mise en jeu dos
estímulos musculares. Estratégia singular que ostenta ao outro as misteriosas
tensões além do subconsciente, num signo externo impregnado de harmonia. Muitos
psicólogos admitem que sem o desenvolvimento das comunicações corporais, como a
mímica facial, o andar, a movimentação das mãos, certos sentimentos chegam a se
atrofiar. O ato anímico e o dos músculos é interativo. É algo psicomotor. No
dizer de Orlando Vilela “ser sinal e instrumento do espírito, eis a missão
fundamental do corpo humano”6. Várias ações do soma e da psique se implicam
mutuamente como fenômenos concomitantes. Aliás, já se diagnosticou o
desrespeito, em nossos dias, tão acentuado no relacionamento entre pessoas, pelo
desleixo com um ritual que, em priscas eras, era altamente formativo. Hoje se
fulmina facilmente o semelhante com a protérvia do menoscabo. César Netto vazou
numa frase fagulhante a importância da cortesia e do urbanismo: “Polir os
costumes é exercer uma função de alta benemerência”7. E que na feliz expressão
de Jean Bergès “o gesto é uma ponte estendida em direção a outrem”8. Com efeito,
“a avidez, a curiosidade, a capacidade de interessar-se, o desejo de conhecer, o
impulso, o calor, o entusiasmo, eis as molas da motricidade, traços da
personalidade que provocam, encorajam e sustentam a atividade, conferindo-lhe,
ao mesmo tempo, certa forma dinâmica e representando o fim a atingir como sendo
desejável e capaz de trazer satisfação”9.
Respeito à dignidade do ser racional
Se não são mais admitidos brigões e espadachins, os quais alardeavam a destreza
de seu florete e suscitavam, para tanto, agravos e injúrias, inúmeros são os que
se blasonam de seus despautérios, contestando autoridades ou fazendo de seus
veículos motorizados armas que matam, arrasam, trucidam. Nas estradas, e o que é
pior ainda, nas ruas das vilas e cidades, atitudes impensadas de jovens
desabridos, colocando em risco vidas preciosas, numa belicosidade que faria
inveja aos bárbaros. É de se lamentar que não pese sobre tais vilões a manopla
acerada da justiça, pois até os pais recalcitrantes ante comportamento tão
indigno assumiriam sua tarefa, tutelando e resguardando a dignidade dos filhos e
a integridade dos outros. Existe como que uma sedução insinuante na má conduta,
presa nos lúgubres tentáculos de um ativismo condenável. Muitos são os que se
afoitam à agressão física, após atropelar todas as regras do urbanismo. Busca de
fortes emoções que arriscam a própria existência e o bem-estar geral. Cumpre uma
regeneração que só uma educação fará surgir. Faz-se mister instituir novamente o
magistério do bom tom, a alta escola da civilidade, da polidez, de usos menos
selvagens e deprimentes, eivados de brusquidão. Precisão imediata de se depurar
os gestos, suavizando e aprimorando a apresentação em público. Retorno ao
donaire dentro de casa. Até na linguagem, uma volta a expressões mais ataviadas,
envoltas na pulcritude da candura e da simplicidade. Revisão urgente contra a
bruteza e a truculência. Não se preconiza, é óbvio, uma etiqueta artificial ou
normas postiças, vazias em si mesmas, sintomas de medo e falsidade. Seria grave
erro endeusar fausses grâces, la minauderie, l’affeterie, la fausse dignité, la
fausse modestie, la fausse pieté, la fausse douleur da grã-finagem fora de moda,
ademanes condenados pelos próprios franceses. O problema é o abandono acintoso
das leis do cavalheirismo, que é índice de uma delicadeza cordial que se
extravassa no acatamento, cheio de sentido, e em outras posturas merecedoras de
encômios. Não se pode menoscabar a influição valorativa dos esquemas corporais e
suas belezas simbólicas. São formas, limites, qualidades em consonância com
modelos em vista a uma sintonia social. Daí a moderação, a reserva, a elegância
que embelezam o trato mútuo.
Os gestos e a Filosofia da Religião
A relevância da ação gestual ressuma na Bíblia. Deus ditou pormenores do culto a
Ele devido. A liturgia cristã, com o esplendor de suas lustrosas cerimônias,
educou gerações. Foi recurso valioso empregado pelos missionários de todas as
épocas. No Cenáculo, Cristo deu uma aula sobre o valor dos gestos. O local
adrede escolhido, o cingir-se com uma toalha, o lava-pés, a entrega do Pão
consagrado, o passar do Cálice, tudo revestido de simbolismo. Os cristãos
compreenderam a lição do Mestre. Como, com rara felicidade, escreveu Hélène
Lubienska de Leval: “a liturgia foi o meio pedagógico soberano e escola de
disciplina, o resumo da doutrina, o lugar de encontro das almas com Deus, a
obra-prima da Igreja”10.
Nas últimas décadas, a contragosto dos Papas, se vem assistindo um esvaziamento
litúrgico, em certas regiões, terrivelmente deletério. Em nome de uma
pseudo-aplicação da oportuna reforma conciliar, se verifica como triste seqüela
o enfraquecimento da fé, sobretudo na presença real. As genuflexões substituídas
por um mero sinal de cabeça quase imperceptível. Amputações indevidas de
cerimônias e muitos estão abolindo, por conta própria, o lavar das mãos no
ofertório, o qual proporciona fundas reflexões sobre a pureza da consciência.
Tudo isto a causar a irreligiosidade, a perda do lado místico das realidades
eternas.
A História da Igreja faz ver que, quando no século IV se fixaram as grandes
linhas da liturgia, não houve improvisação. Realizou-se, isto sim, a codificação
de uma tradição estabelecida, vinda dos antepassados. Patrimônio sacrossanto que
devia ser conservado, burilado, enriquecido. Donde as precedentes adaptações
litúrgicas de cada época. Estas, porém, formando uma corrente secular que leva
até o Redentor no momento solene da Última Ceia. O próprio contexto
histórico-social impõe novas formulações para exprimir a religiosidade, a
crença. Aceitar, contudo, o caos é um extremo alarmante. Eis por que toda
deformação no culto divino é antievangélica, atenta contra a Filosofia da
Religião e priva os fiéis de uma maior penetração no mistério celebrado.
A essência do gesto
A qüididade do gesto é a correlação entre ele e o que está dentro de cada um. A
movimentação e a essência da mensagem estão em profundo acordo. E a verdade
psicológica, fundamentada na verdade lógica. Faz luzir os espíritos elevados.
Ser autêntico não é deixar aflorar o incontrolável. Através de árduas pugnas o
indivíduo seleciona o que é nobre, digno, puro e manifesta isto em vestígios
lucíferos. São lampejos perceptiveis de um tesouro oculto no recôndito do ser. A
cortesia é indício de equilíbrio psíquico, pois neste caso as manifestações
neuromusculares inconscientes não estão a solta. Coragem, fidelidade,
deferência, finalmente, todas as virtudes exigem uma ascese que objetiva a
supremacia da mente sobre o corpo. A estética corporal é em si reveladora. Quer
as formas estáticas, quer as cinéticas, falam. Tudo na natureza é ritmo,
consonância. O ser racional só alcança esta situação ótima com persistência.
Possui, todavia, a infeliz sina de poder introduzir a desordem cósmica. A razão
só pode exercer sua preeminência naquele que é responsável e consegue transmitir
o bem imenso, escondido muito além nos tesouros de seu coração. É disto que a
sociedade precisa e não dos aleives de uma incontinência que balda os exercícios
factícios da autodisciplina. E que os gestos são eflúvios exteriores de ternura
ou petulância, de sinceridade ou dobrez, de nobreza ou dicacidade, de fidalguia
ou impolidez. Ilaqueiam em desejáveis e coroáveis afetos ou desferem chispas que
ferem. São broquel contra a celeradez ou lança que fustiga. Sua elocução é
eloqüente. Há necessidade de se valorizar o relacionamento humano,
metamorfoseando os repentes de acrimônia e das alarvarias do apetite,
transmutando gargalhadas em sorrisos, a insubmissão no reconhecimento do mérito,
na inclinação ante o genuíno prestígio. Superação da animalidade. O triunfo do
bom, do belo. A predominância do espiritual, que vale muito mais que as bravuras
da força e as insolências do mau humor.
Os gestos conscientes são, de fato, as modelações de uma personalidade bem
formada, a revelação de uma mundividência alicerçada em sólidos princípios
filosóficos.
NOTAS
1 Eclesiástico 19,25-27.
2 Homero. Ilíada, Livro XIII.
3 Virgílio. Eneida, Livro I.
4 Romano Guardini. Les signes sacrés. Paris, Spes, 1938, p. 34.
5 J. Mouroux. Vocação Cristã do Homem. São Paulo, Flamboyant, 1961, p. 43.
6 Pe. Orlando Vilela. A pessoa humana no mistério do mundo. Petrópolis, Editora
Vozes Ltda., 1968, p. 45.
7 César Netto. Palavras Preambulares in: Carmen d’Avila, Boas Maneiras. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1956, p. 5.
8 Jean Bergès. Os gestos e a personalidade. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1972, p. 12.
9 Idem, ibidem, p. 10.
10 Hélène Lubienska de Leval. L’éducation du sens religieux. Paris, Éditions
Spes, 1946, p. 159.