Subsídios para o Estudo das Idéias Filosóficas em Minas Gerais

Por Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho

 

O objetivo deste capítulo é oferecer elementos para uma visão do pensamento mineiro, uma vez que nas obras já publicadas se nota um esforço pioneiro de levantamento de fontes e de uma análise que objetiva uma síntese integralizadora, mas, além de certas lacunas, há interpretações que violentam a realidade da evolução filosófica mineira.

A primeira manifestação da cultura de Minas Gerais e, na verdade, a expressão intelectual genuinamente brasileira, que tinha seu início, se deu através da arte barroca. Ao se fazer a filosofia desta arte1 se conclui que seu substrato ontológico é a liberdade, que levou à quebra de padrões portugueses e foi o embasamento ideológico da elite culta colonial. A qüididade do Barroco Mineiro é a liberdade. Isto, aliás, até explica a conclusão tirada por alguns observadores de que as idéias filosóficas de Minas Gerais se desenvolveram de uma maneira diferente da reflexão filosófica de outras regiões.

Minas Gerais nasceu sob o signo da luta contra a opressão. Assim sendo, julgamos que não houve dois momentos na elaboração da consciência mineira. A Conjuração de 1789 foi o auge da crise desta consciência. O século XVIII é, verdadeiramente, o período iluminista com profundos reflexos no século seguinte que continuará sentindo a influência da Universidade de Coimbra. Em 1816, por estar fechado o Seminário, a Câmara de Mariana pediu a D. João VI que se abrisse na cidade um Colégio de Artes e Disciplinas Eclesiásticas. No importante documento tem relevo o ensino da Filosofia. Eis um trecho significativo: “Para a Rethorica serão dadas duas horas também interpoladamente. A de Filosofia terá hora e meia e deverá começar suas lições pela História desta Sciencia, seguindo-se-lhe a Lógica, Metaphisica e Ethica... Em cada uma das sobreditas Aulas se usará dos Compêndios da Universidade de Coimbra, seguindo-se o mesmo methodo de ensinar...”. O dito documento lembra ainda que, segundo a “providência de Honório III, “os Clérigos dos Seminários deviam no prazo de dois anos “instruir-se à Universidade de Coimbra...”.2

Em Minas Gerais, no século XVIII, as idéias filosóficas têm como centro o Seminário de Mariana, fundado em 1750 por D. Frei Manoel da Cruz, no qual as idéias iluministas trabalhavam os espíritos via Coimbra e via autores franceses aí lidos e até memorizados.

Que os estudos filosóficos em Mariana alcançaram, logo no início, grande êxito o sabemos por um documento do Vigário Capitular Dr. Alexandre Numes Cardoso, cujo edital de 1764 apresenta este trecho: “... e havendo outrossim respeito a estar-se finalizando o triênio do curso de Filosofia, que se abriu no Seminário desta Cidade, com notório aproveitamento dos eclesiásticos que a ele se aplicaram do que nos resulta grande consolação ...”.3

O Cônego Luís Vieira da Silva, professor de Filosofia no Seminário de Mariana, célebre pela sua participação na Conjuração de 1789, sabia de cor passagens de Raynal, Locke, Condilac, Montesquieu, Voltaire, Rousseau, cujas idéias fundamentaram o movimento iluminista e cujos livros estavam presentes na sua rica biblioteca como relatam os Autos de Devassa da Inconfidência Mineira.4

Tudo isto revela que o momento iluminista português no século XVIII teve aqui sua natural maturação, sendo o instante ideológico de Minas Gerais o efeito mais evidente das idéias lançadas em Portugal por Pombal e divulgadas aí por Verney.

As obras existentes na Biblioteca do Seminário Menor de Mariana confirmam a influência de Antônio Genovesi, seguida do influxo de Sigmundo Storkenau e do surto eclético.

Um dos livros existentes na Biblioteca do Seminário é o Curso de Philosophia, escrito por João Cândido de Deos e Silva, conforme o programa para o bacharelado, publicado por E. Géruzez, agregado à Faculdade de Letras de Paris. Era João Cândido natural de Belém do Pará, lente do Curso Jurídico de São Paulo. Iniciou seu trabalho a 22 de junho (domingo), findou a 18 de julho de 1845 (sexta-feira). Foi publicado pela Tipografia Niteroiense de Rego. Por este livro se confirma que o Compêndio de Géruzez era adotado nas Escolas e havia nelas falta do mesmo. Estava a serviço do ecletismo.

Acrescente-se que houve, já no século XIX, em Mariana e em outros centros mineiros de estudos, um decisivo retorno à Filosofia Escolástica através dos manuais clássicos então adotados nos Seminários e outros Estabelecimentos de Ensino Superior.

Relacionamos algumas das obras filosóficas existentes na Biblioteca do Seminário, em 1978, e que embasaram as afirmativas do texto acima. De algumas havia vários exemplares.
 
 
 
AGOSTINI, Dominico. Institutiones philosophiae speculativae. Bononiae, Ex officina pontificia mareggiana, 1878.
ALMEIDA, Dorotheio. Cartas físico-matemáticas de Theodozio Eugenio para servir de complemento à Recreação Philosophica. Lisboa, MDCCLXXXIV, offic. de Antônio Rodrigues Galhardo.
BALMES, Jacques. Philosophie Fondamentale. Paris, Auguste Vaton Libraire Éditeurs, 1864.
BARBE, M. L’Abbé E. Cours elementaire de Philosophie. Paris, Jacques Lecoffre et Cie. Libraire Éditeurs, 1859.
É de se observar que, segundo o códice 1.199 do Arquivo Público Mineiro, referente ao ano de 1867, o Diretor Geral da Instrução Pública, usando da atribuição que lhe confere o § 6o do artigo 80 do Regulamento no 56, determina que nas aulas de instrução secundária dos externatos e avulsas desta Província seja adotado para o ensino de Filosofia este manual. Sobre Barbe, assim se expressou o Prof. Antônio Paim5 em carta que aqui transcrevemos na qual se aborda também o problema do Tradicionalismo:
 
Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1979.
 
Estimado Cônego José Geraldo:
 
Estava mesmo pensando em escrever-lhe sobre o compêndio de Barbe. Encontramos duas traduções. A primeira, em dois tomos, de Joaquim Alves de Souza, impressa em Paris em 1846. A segunda é de João Luiz Soares Martins, impressa na Bahia em 1861 (Tip. De Camillo Mason), na qual consta “3a edição”. Acerca desse compêndio há um incidente interessante relatado por Clovis Bevilaqua na História da Faculdade de Direito do Recife (2a edição, pág. 106). Antônio Herculano de Souza Bandeira, que era professor de filosofia no Curso Anexo da Faculdade, pretendeu substituir o compêndio de Barbe pelo de Charma. O Ministro do Império interveio para obstar a pretensão.
A impressão que temos, eu e Pinheiro, é de que o compêndio de Barbe também poderia ser arrolado como eclético.
Gostei muito da discussão sobre tradicionalismo. Com base nas indicações do Prof. José Pedro Galvão talvez possamos agora formular uma hipótese talvez mais próxima da realidade. Partindo da indicação de que estão dissociados tradicionalismo filosófico e tradicionalismo político, talvez possamos dizer que no século passado o tradicionalismo era apenas filosófico. O tradicionalismo político aparece com a República e seus partidários adotam diferentes filosofias, inclusive o tomismo. Se é assim, não pode ser encontrada uma característica comum aos dois fenômenos, como pretendia.
Deixa a saudação cordial, o
Antônio Paim
 
BOUVIER, J. Institutlones Philosophae Epeculativae. Bononiae, Ex officina pontificia mareggiana, 1878.
COUSIN, M.Victor. Philosophie de Locke. Paris, 1861, Didier.
COUSIN, M. Victor. Cours de Philosophie. Bruxellas, 1840, Société Belge et Librairie Hauman et Cie.
FARGES, A. et BARBEDETTE, D. Philosophia Scholastica. Parisiis, Apud Baston, Berche et Pagis, Editores, 1892.
GENUENSIS, Antonii. Disciplinarum Metaphysicarum elementa, Mathematicum in morem adornata. 5 tomos, Bassani Venetiis apud Remondini, MDCLXXIX.
GÉRUZEZ, E. Curso de Philosophia. Tradução de João Cândido de Deos e Silva. Tip. Nictheroyense de Rego, 1845.
LIBERATORE, Le, P. Théorie de la Connaissance. Paris, H. Casterman, 1865.
MOURATO, D. Carlos Joseph (Clérigo Regular). Instrumento da verdade practica ou Philosophica Moral. Lisboa, Officina Luisiana, Ano MDCCLXXVII, 3 tomos.
SANSEVERINO, Caietani Can. Philosophia Christiana. Napoles, Apud officinam bibliotecae catholicae scriptorum, MDCCCXCIV.
SIGNORELLO, Lexicon. Peripateticum Philosophico-Theologicum. Neapoli, Apud officina bibliotecae catholicae scriptorum, MDCCXXII.
STORCHENAU, Sigismundi. Instituiones logicae. Bassani suis Typis Remondini Edidit, 1855.
STORCHENAU, Sigismundi. Instituiones metaphysicae. Bassani suis Typis Remondini Edidit, 1855.
TONGIORGI, S. Institutiones philosophicae. Anicii, Typis M.P. Merchesson, 1868.
VALLET, P. Histoire de la Philosophie. Paris, A. Roger et F. Chemoviz Éditeurs, 1881.
VALLET, P. Praelectiones Philosophicae ad mentem S. Thomae Aquinatis. Parisiis, 1884.
VERNEY, Aloysii Antonii. Relogica. Neapoli, 1769.
WOLFF, Chistiano L.B. Institutiones juris naturae et gentium. Halae Magderburgae, MDCCLCIII.
 
Notas
 
1      cf. capítulo Filosofia e Comunicação da Arte Barroca.
2      Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.
3      Idem.
4      ADIM, MÊS, 1936, vol. V.p.282-290.
5      O Filósofo Antônio Paim, professor em diversas Universidades do Rio de Janeiro, tem enriquecido a bibliografia do Brasil com numerosas obras de alto significado, como: A Filosofia da Escola do Recife. Rio de Janeiro, Editora Saga, 1966, 217 pp.; História das Idéias Filosóficas no Brasil. São Paulo, Ed. Grijalbo/Universidade de São Paulo, 1967, 276 p. (Prêmio Instituto Nacional do Livro de Estudos Brasileiros - 1968); 2a ed., São Paulo, Grijalbo/USP, 1974, 431 pp.; Cairu e o Liberalismo Econômico. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968, 118 pp.; Tobias Barreto na cultura brasileira: uma reavaliação (em colaboração com Paulo Mercadante). São Paulo, Ed. Grijalbo/Universidade de São Paulo, 1972, 201 pp.; Problemática do culturalismo. Rio de Janeiro, PUC/RJ, 1977, 69 PP.; A Ciência na Universidade do Rio de Janeiro (1931/1945). Rio de Janeiro, IUPERJ, 1977, 161 pp.; A querela do estatismo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978, 161 pp.; O estudo do pensamento filosófico. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1079, 157 pp.; Bibliografia filosófica brasileira. 1808-1890 (no prelo); 1891-1930 (em preparo); Período contemporâneo (1931-1977). São Paulo, GRD/INL, 1979, 246 pp.; A UDF e a idéia de universidade. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1981.