Kierkegaard
doutorou-se aos vinte e oito anos com a tese O conceito de ironia em
Sócrates. Para Kierkegaard,
Sócrates
era um pensador existencial, uma pessoa que focalizava toda a sua existência
para dentro de sua reflexão filosófica. Sua crítica aos românticos estava
exatamente neste ponto: eles não refletiam suficientemente sobre o ser
enquanto unidade ou totalidade individual, ente existente e original,
indivíduo responsável por sua própria vida. De igual forma, Kierkegaard
voltou-se contra a filosofia de Hegel enquanto "sistema" que era usado como
um espécie de paradigma infalível que tenderia a explicar tudo. Para
Kierkegaard, as "verdades objetivas" e a "filosofia especulativa", quando
voltadas ao externo - como na filosofia hegeliana - eram muito pouco
significativas para a qualidade
existencial
do homem enquanto indivíduo. Mais importante que a busca de uma, ou algumas,
verdade(s) geral(is), era a busca por "verdades" que fossem
significativas para a vida de cada indivíduo, para cada um.
Normalmente as pessoas que aderem rigidamente a uma teoria, e se orgulham de
serem "objetivos", se esquecem que também são pessoas e que sua a
adesão a um sistema teórico é mais uma questão de escolha e preferência do
que de objetividade. Utilizando-nos de um exemplo moderno, um
psicanalista, por exemplo, frequentemente enche a boca pra falar da teoria
de Freud como "a verdade": senão a verdade total (admitir isso seria
parecer ingênuo), com certeza se apresenta como a mais racional para
explicar o mundo dos comportamentos humanos. Ora, esta premissa aprioristica
de que uma teoria é a correta para explicar coisas já a coloca,
implicitamente, pelo sujeito que a elege, junto com ele mesmo por a eleger,
num ilusório e vaidoso patamar de superioridade intelectual, e instala-se a
disputa entre "a minha teoria - a correta - e as demais". Não se ventila o
fato de que a teoria é aceita por uma questão de preferência pessoal,
por uma idenditificação entre a concepção de homem do psicanalista e
a visão de homem da teoria freudiana. A objetividade acaba sendo uma questão
fantasiosa. Disputa-se a primazia da melhor argumentação interpretativa.
Nisso a pessoa esquece dos próprios anelos, sonhos, desejos, aspirações que
não se enquadram perfetiamente bem na teoria, a não ser que se utilize de
artifícios de retórica. Esquece-se de que é uma pessoa bem mais complexa do
que pode ser entendida em algumas linhas escritas num livro ou em meia dúzia
de parágrafos racionalmente bem elaborados. Além do mais, quando atrelado de
modo rígido à teoria, a pessoa fica na expectativa de observar
comportamentos "esperados", e acaba por induzir outrem, de uma forma ou de
outra, a agir conforme o esperado. O "outro" deixa de ser o outro per si,
para ser um fantoche que age sutilmente de acordo com um enredo
preestabelecido pela teoria, no caso, a teoria psicanalítica. O doutor
psicanalista se apresenta ao "paciente" como alguém que fosse mais que
uma pessoa como outra qualquer: é o "DOUTOR" capaz de explicar, ou de
entender, melhor que o próprio paciente, os seus próprio problemas e os
mistérios da psique humana.
Como bem frisou Jostein Gaarder, Kierkegaard não está interessado em
construir uma teoria ou uma descrição genérica do ser humano. O que
lhe interessa é o existir, o fato de haver uma pessoa aqui e agora, com tudo
o que possa
experimentar à sua volta. Ninguém vivencia a vida plenamente se ficar
trancado dentro de uma biblioteca, teorizando ou discutindo sobre o que
dizem que é a vida. Reduzir-se a isto pode dar a impressão de
intelectualidade, mas será uma intelectualidade superficial e, muitas vezes,
amarga. Apenas quando vivenciamos, quando agirmos, quando fazemos
escolhas e ousamos experimentar é que nos relacionamos com a própria
existência, portanto indo além de um mero projeto mental do que seja a
existência. Voltando ao exemplo da psicanálise, quando alguém está sofrendo
uma dor na alma ele não quer saber se isso é o resultado de um complexo de
édipo mal resolvido, ou se suas pulsões entram em conflito com um supergo
que pressiona o ego a controlar os anseios de um id, do mesmo modo como uma
pessoa que é ferida por uma seta envenenada não tem qualquer interesse de
saber de que tipo é o veneno que o ameaça. Ele quer o alívio e a cura que o
possibilitem existir, quer alguém que lhe extraia a seta envenenada e o
ajude a viver. E é isso que é essencialmente importante: viver, viver
tanto quanto possa ser possível no curto período de tempo que passamos na
terra. Não dá pra perder tempo especulando ou construindo um modelo teórico
apenas com o objetivo de ser mais aceitável e melhor que qualquer outro
sobre o mecanismo energético do psiquismo humano alimentado por uma energia
de natureza sexual chamada libido, etc, funcionando como se fosse um
aparelho hidráulico. Isso
simplesmente é
um modelo, ou um mapa, não o território, e ainda assim voltado apenas para
um aspecto do complexo psíquico humano, portanto não pode ser uma descrição
acurada da realidade. A contribuição de Freud para a compreensão do
psiquismo humano, notadamente quanto ao inconsciente, é
inquestionável, mas ele também deixou em sua obra uma visão pessimista de
homem e de mundo que tem condicionado e reforçado muito do aspecto negativo
de nossa civilização através do que hoje se convêm chamar a psicanálise
como uma ética, conceito muito caro aos lacanianos.
Kierkegaard também postulou que a verdade é subjetiva, pois o que é
realmente importante é pessoal. O
cristianismo é verdade? Esse é um grande exemplo de que existem questões
que não podem ser encaradas do frio e mecanicista ponto de vista teórico ou
acadêmico, eivado de preconceitos. "Para alguém que se entender como algo
que existe, trata-se aqui de uma questão de vida ou morte. E isso não se
discute simplesmente porque se gosta de discutir." (Gaarder, 1995). Em
outras palavras, e usando outro exemplo, quando você cai na água, não fica
teorizando sobre sua composição, ou se vai ou não se afogar. Você caiu na
água e neste instante você tem de fazer alguma coisa pra se manter vivo. Tem
de encarar o momento e experimentar um modo de usá-lo em proveito próprio.
Quanto à questão do Cristianismo, é preciso distiguir entre a questão
filosófica de saber se Deus existe e a relação do indivíduo
para com essa mesma questão. Cada um vai ter de enfrentar, ou não enfrentar,
tais questões sozinhos. E além disso, temos nossas emoções e nossas crenças.
Kierkegaard não considera essencial aquilo que somos capazes de compreender
apenas com a razão. Apesar de ser uma verdade universal de que três vezes
quatro sejam doze, o que mais nos importa é se a vida tem algum sentido, se
existe um Deus, etc. Não são verdades genéricas e racionais o que mais nos
interessa, mas o que é existencilamente significativo. Saber se alguém que
estimamos também gosta da gente é algo significativo e envolvente. Saber que
a soma dos ângulos de um triângulo é de cento e oitenta graus é apenas uma
informação que pode ser algo prático, mas não essencial principalmente
frente a um belo por do sol.
Muitas pessoas tentaram provar racionalmente a existência de Deus. Mas com
argumentos racionais, perdemos nosso fevor religioso da mesma forma como um
poema perde seu encanto quando analisado sintaticamente. O fundamental não é
saber se o Cristianismo é verdadeiro globalmente, o fundamental é saber se
ele é verdadeiro para mim. Se é válido pelo menos para mim, que me
importa se outros dizem que não o seja? Por que deveria aceitar algo
negativo apenas porque um outro disse que é ou não é assim? O que sabe esse
outro sobre mim de fato para dizer o que seja ou não válido para mim? Ainda
que o Cristianismo seja uma questão de fé, e não de razão, ainda assim posso
dizer que ele é importante, pois ele toca um lado que vai além de uma
decantada razão que, se levou o homem à lua, também construiu a bomba
atômica e as relações de dependência econômica entre povos e nações,
afastando o homem do homem e da natureza e levando-o esquecer de sua
realidade subjetiva. Para Kierkegaard a sociedade urbana e burguesa reduziu
o homem a um ponto perdido na multidão, um João igual a outros Joões, um ser
amorfo, "conformista" e conformado em ser igual a todos os demais. Todos
parecem estar fazendo e defendendo coisas parecidas, mas sem se entregarem
realmente a nada. Ele apontou o fato de que a maioria sempre é facilmente
influenciada. A maioria quase sempre tenderá a escolher Barrabás. Assim,
hoje temos várias pessoas fumando tal marca de cigarro que leva "ao
sucesso", ou aceitar que o melhor emprego é o de ser médico ou engenheiro
pelo status que advém frente à sociedade, etc.
Kierkegaard , com indescutível coragem e franqueza, e em nome da realidade
do Ser Existencial, ataca de frente a filosofia especulativa: "A
existência corresponde à realidade singular do indivíduo (o que Aristóteles
já falara): ela permanece de fora e de qualquer forma que a tente
compartimentalizar dentro de conceitos (...). Um homem singular não pode ser
simplesmente redutível a uma existência conceitual". Para Kierkegaard, a
filosofia parece interessada apenas nos conceitos: ela não se preocupa com o
existente conrcreto, com o que podemos ser de fato, no ato de agir em
nossa singularidade; ao contrário, embebida do modelo cartesiano-mecanicista
da ciência clássica, ela quer se ocupar com o homem em geral, com o
conceito de homem. Mas nossa existência não é em absoluto um conceito.
Antes, o conceio é um subproduto da existência. Trocamos frequentemente o
território pelo mapa. Quando perguntaram ao Buda o que era uma flor, ele
simplesmente entregou uma flor ao seu interlocutor. Pra que especular sobre
algo que existe e está em nossa frente? Ora, como diz Milan Kundera em "A
Insustentável Leveza do Ser" : Existem cada vez mais universidades e
cada vez mais estudantes. Para obter o diploma, é preciso que eles encontrem
temas de dissertação. Existe um número infinto de temas, pois pode-se falar
de tudo e sobre nada. Pilhas de papel amarelado se acumulam nos arquivos,
que são mais tristes do que os cemitérios, porque não vamos a eles nem mesmo
no dia de Finados. A cultura desaparece numa multidão de produções, na
loucura da quantidade (...). E diz Kierkegaard: "Isso acontece com a
maioria dos teóricos em relação aos seus sistemas, como se alguém
construísse um enorme castelo e depois fosse morar num celeiro. Eles não
vivem pessoalmente dentro de seus enormes edifícios sistemáticos". É por
isso que quando o sistema fica embaraçoso para quem o cria.... "às vezes
um charuto é apenas um charuto" (Freud) ...
O que Kierkegaard ataca firmente é a pretensão de certos teóricos têm de
explicar tudo e demonstrar a necessidade causal dentro e de acordo com
uma teoria. Isso serve mais que nunca, permitam-me dize-lo, aos
psicanalistas que não se lembram que o próprio Freud reviu toda a sua teoria
até os últimos dias, e concebem a psicanálise como algo acabado e
respresentativo da totalidade psíquica Mas o sistema não consegue engaiolar
a existência, que é muito mais rica que a visão de mundo do teórico, e o que
ela evidencia é tão só uma parte de algo muito mais complexo, algo que está
além do universo bidimensional que se escreve num pedaço de papel. Para
Kierkegaard é cômico que alguém possa acreditar num sistema teórico como
sendo a verdade absoluta, do mesmo modo como é cômico um geógrafo que
acredita apenas no que dizem os mapas e não ousa ir até às montanhas mais
altas. É cômica a situação do "espírito sistemático, que acredita poder
dizer tudo e está persuadido de que o incompreensível seja algo falso
e secundário". Porém este cômico pode se tornar algo dramático ao induzir
uma visão de mundo que acaba por se auto-validar. A visão de mundo sempre
acabará por criar os meios de se auto-financiar. Foi o que ocorreu nos
últimos três séculos com o sucesso do paradigma cartesiano em ciência.
Se o cientista quer compreender Deus através de seu campo, ele tenderá ao
estrondoso fracasso, e não há fracasso maior do que se colocar no lugar de
Deus. Mitos como o de Prometeu ou o de Frankenstein parecem expor isso. E
também se verá numa situação embaraçosa se quiser levar a cientificidade
para a esfera do espírito. Os problemas éticos e da religiosidade legítima
não se deixam tratar com os métodos das ciências naturais. Quem quer que
tente fazer isso é provavelmente um ser perigosamente seguro de seus
experimentos. Como diz Kierkegaard, é arrogante a classe dos naturalistas
"que querem liquidar Deus completamente, como supérfluo, subsituindo-o pelas
leis naturais". No fundo, isso é só uma substituição tola. É a
substituição de uma idéia initeligível por outra equivalente, com a
diferença de que esta última dá uma certa presunção de controle e de
compreensibilidade bem humanas sobre a natureza. A presunção dos cientistas
se expressa na luta apaixonada contra Deus e tende a criar "toda uma
multidão de homens que fará das ciências naturais sua religião." No
fundo o que se quer é ter a certeza de que a natureza é uma máquina que pode
ser dominada completamente pelo homem, e nada mais.
Para Kierkegaard, a verdade é subjetividade: ninguém pode se por no meu
lugar. Sou eu quem devo fazer a escolha de ser o que posso ser ou de ser uma
cópia do que se espera que eu seja, de acordo com os referencias que nos são
dados por outrem ou pela cultura. A existência é o reino do vir a ser, é o
reino da liberdade: o homem é o que ele escolhe ser quando consegue atingir
um certo grau de lucidez, ele é o que se torna. Isso implica que o modo de
ser da existência não é a realidade ou a necessidade, mas sim a
possibilidade e isso traz a angústia, que é o sinal de que se atingiu
uma "situação existencial". A pessoa pode ou não decidir se dará um salto
para um estágio mais elevado de existência. Toda transformação é um
renascimento e todo renascimento é também uma morte. Sai-se de um estágio
para outro. A pessoa decide se quer ou não ir adiante, e o medo do novo traz
a angústia. "A angústia é a possibilidade de liberdade: somente a
angústia, através da fé, tem a capacidade de formar, enquanto destrói todas
as finitudes". Ninguém poderá dar esse salto por você. Afinal, todo
conhecimento vem de dentro, como dizia Sócrates. A angústia é o puro
sentimento do possível, é o sentido daquilo que pode acontecer. "Se
alguém souber tirar proveito da experiência da angústia, se tiver CORAGEM de
ir mais além, então dará à realidade outra explicação: exaltará a realidade
e, até quando ela pesar duramente sobre ele, recordar-se-á de que ela é
muito mais leve do que era a possibilidade". E o grande salto, o mais
difícil, é o de "cair nas mãos de Deus", de dar o grande salto rumo às
"setenta mil braças de água", de entrar num nível além do convencional, num
nível, ouso dizer,
Transpessoal.
Soren Kierkegaard morreu em 11 de novembro de 1855, em meio aos ataques
contra suas idéias.
Bibliografia Sugerida
Real, Giovanni & Antiseri, Dario - História da Filosofia, Vol. III. Editora
Paulos, São Paulo, 1996.
Gaarder, Jostein. - O Mundo de Sofia. Companhia das Letras, São Paulo, 1995.
Kierkegaard, Soren A. - Diário de Um Sedutor e outras obras. Coleção "Os
Pensadores", Ed. Abril, São Paulo, 1989.