Plotino, segundo Jostein Gaarder, via o mundo fenomênico e humano como algo
que está entre dois polos: Numa extremidade está o divino, de onde tudo vem
e para onde tudo vai, ao qual ele chamava de Uno. Plotino abraçava uma
concepção holística do universo (é pena que a palvra holismo esteja, hoje em
dia, misturada com uma falácia de lixo pseudo-místico, que lhe tiram o
signficado real). Às vezes Plotino chamava o Uno de Deus. Na outra
extremidade estaria aquilo que Plotino chamava de reino das sombras, onde
apenas uma fração ínfima da luz divina chegava. Mas Plotino usava estas
metáforas apenas como uma figuração didática. Ele dizia, por exemplo, que
estas trevas não tinham uma existência concreta. Elas eram apenas a ausência
momentânea da Luz Divina, como mais tarde Mestre Eckhart diria que a matéria
era a condensação de algo espiritual. Assim, sendo este extremo apenas
ausência de luz, as trevas não são. Elas apenas estão na escuridão. A única
existência real é a existência da odem implícita que causa o mundo
fenomênico mutável. Assim, só Deus é o real. Mas, assim como uma fonte de
luz pouco a pouco se perde na escuridão, também podemos imaginar um lugar
onde os raios divinos chegam muito fracos, o que Plotino identificava com a
matéria. Mas até mesmo a matéria possui um pouco da luz divina. Sabemos hoje
em dia, pela Física, que a matéria nada mais é que uma condensação de algo
mais sutil: a nergia.
Eis um belo resumo das analogias poéticas da obra de Plotino (e, por
ligação, de Amônio Sacas) dada por Jostein Gaarder:
"Imagine uma enorme fogueira creptando no meio da noite. Do meio do fogo
saltam centelhas em todas as direções. Numa amplo círculo ao redor do fogo a
noite é iluminada, e a alguns quilômetros de distância ainda é possível ver
o leve brilho desta fogueira. À medida que nos afastamos, a fogueira vai se
transformando num minúsculo ponto de luz, como uma lanterna fraca na noite.
E se nos afastarmos mais ainda, chegaremos a um ponto em que a luz do fogo
não mais consegue nos alcançar. Em algum lugar os raios lumiosos se perdem
na noite e se estiver muito escuro não vamos enxergar nada. Nesse momento,
contornos e sombras deixam de existir".
"Agora imagine a realidade como sendo esta enorme fogueira. O que arde é
Deus - e as trevas que estão lá fora são a matéria fria, onde a luz está
fraca, da qual são feitos homens e animais. Junto a Deus estão as idéias
eternas, as causas de todas as criaturas. Sobretudo, a alma humana é uma
'centelha do fogo'. Mas por toda a parte na natureza aparece uma pouco desta
luz divina. Podemos vê-la em todos os seres vivos; sim até mesmo uma rosa ou
uma campânula possuem um brilho divino. No ponto mais distante do Deus vivo
está a matéria inanimada".
"Digo que tudo o que vemos tem um pouco do mistério divino. Podemos ver o
brilho desta alguma coisa num girassol ou numa papoula. Percebemos um pouco
mais deste insondável mistério numa borboleta que pousou num galho, ou num
peixinho dourado que nada no aquário. Mas o ponto mais próximo em que nos
encontramos de Deus é dentro de nossa própria alma. Só lá é que podemos nos
re-unir com o grande mistério da vida. De fato, em alguns raros momentos" -
como falam Jung e Maslow - "podemos sentir que somos, nós mesmos, este
mistério divino". O psicólogo americano Abraham Maslow fez exaustivos
estudos provando a existência destas experiências culminantes,
frequentemente impossíveis de serem expressas em palavras sem que se percam
grande parte de sua força extraordinariamente bela e luminosa, e o onde a
sensação de íntimo encontro com algo transcendete é o leitmotiv dominante.
As imagens que Plotino usa, e que Jostein Gaarder acabou de resumir, nos
remetem ao mito da caverna de Platão. Mas enquanto Platão é dualista,
distinguido de forma estanque a oposição entre o espírito e a matéria,
Plotino nos aponta para a realidade de que o isto está também ligado ao
aquilo (como também falava Buda), que o universo é uma imensa rede de
relações onde tudo tem sua razão de ser no conjunto, no holos. Tudo está
ligado a tudo, e tudo é Um, pois tudo concorre para o andamento da obra de
Deus. Até mesmo as sombras têm uma tênue parte desta "Unidade" ((holismo)).
Em alguns momentos de sua vida, Plotino experimentou a vívida sensação de
unir, fundir sua alma com Deus. Em nosso século, Abraham Maslow fez uma
enorme pesquisa para provar que as pessoas mais saudáveis e carismáticas
experimentaram, pelo menos uma vez na vida, uma espécie de experiência de
pico (as Peak Experiences de Maslow) onde parece que as divisões
convencionais do intelecto humano parecem perder todo o sentido, e a pessoa
sente-se plena de uma paz e de um contato mais íntimo com algo transcendetal.
Chamamos a este tipo de experiência de experiência mística. Plotino, porém,
como sabemos, não foi único a viver essa experiência. Como nos fala Jostein
Gaarder, pessoas de todas as culturas, em todos os tempos, têm relatado
experiências semelhantes. Hoje o estudo dessas experiências é feito pela
Psicologia Transpessoal. E um ponto básico destes relatos é o de que, embora
ocorram variantes na descrição desses fenômenos - devido ao pano de fundo
cultural e às crenças do sujeito -, esses relatos têm muitos e supreendentes
pontos em comum.
Misticismo
Em praticamente todos os relatos sobre os chamados êxtases místicos, desde
Plotino (e mesmo antes dele) até os dias de hoje com os pacientes/clientes
da psicoterapia transpessoal, o que vemos é uma espécie de união íntima com
algo que transcende nossos conceitos de realidade, que é difícil de por em
palavras. Na nossa cultura cristã - embora o próprio Cristo tenha relatado
muitas vezes que ele se sentia um com o Pai, de dizer que "vós sois deuses"
e de que "O Reino está em vós" - o padres, pastores e teólogos vários nos
inculcam que Deus fez o mundo sem que se envolvesse com o mundo, ou seja,
que há um abismo entre Deus e sua criação. Deus teria feito as coisas e
estaria apenas observando o andamento do drama universal, às vezes
interferindo momentâneamente em algo, nos chamados milagres. Mas no oriente,
especialmente no budismo e no taoísmo, e no ocidente, nas religiões
originais dos celtas e gauleses (druidas), bem como em alguns de nossos
índios da América do Norte e do Sul, em em todos os místicos de qualquer
religião, o que se vivencia é uma sensação de união, onde este abismo é
desconhecido (veja-se os relatos de Teresa D'Ávila e Juan de la Cruz). O que
ele - ou ela - conhece é uma elevação a Deuss (Gaarder, 1995; Grof, 1988;
LeShan, 1994).
Carl Gustav Jung e Joseph Campbell, bem como Plotino, nos dizem que aquilo
que chamamos comumente de "eu" não é nosso eu verdadeiro, é apenas uma
máscara, o ego. Em momentos de profundo amor e/ou emoção ou paz podemos
sentir rapidamente uma espécie de contato com um eu mais profundo, que Jung
chamava de self, e que alguns místicos chamam de Cristo interior. Alguns vão
ainda mais além, e se sentem unidos ao próprio Deus, ou a uma "consciência
cósmica" - termo muito utilizado na Psicologia Transpessoal. O místico
cristão Angelus Silesius (1624-1677) assim se expressou sobre esta
experiência: "A pequena gota (o indivíduo) se transforma em mar quando chega
até ele; e assim a alma se transforma em Deus quando é nele acolhida" (Gaarder,
1995, p. 154).
Ora, o ego pode se revoltar contra a possibilidade de perder o controle e a
pessoa se "perder a si mesma" nesta fusão íntima com a consciência cósmica,
mas, como muito bem disse Jostein Gaarder, esta pseudo-perda (na verdade o
ego não é eliminado, continua a existir) é algo muito insignificante diante
daquilo que se ganha (veja-se a parábola de Jesus sobre o semeador que
encontra uma pérola no campo, e vende tudo o que tem para comprar aquele
campo). O místico perebe que seu ego é apenas uma parte ínfima de si mesmo.
Compreende que o "eu" real é algo infinitamente maior. Compreende que faz
parte do universo inteiro, que é Deus. É por isso que os hindus dizem que o
Eu é o maior amigo do ego, mas o ego é o pior inimigo do Eu. Ora, como nos
diz Jostein Gaarder, se tememos nos perder enquanto indivíduos num mundo que
para nós é a realidade (o mundo comum), talvez sirva de consolo e estímulo
saber que um dia de qualquer forma termos de perder este "eu cotidiano" de
uma forma ou de outra. Por que não tentar experimentar o verdadeiro Eu
conseguindo-se se libertar do jugo de um eu egóico? "Aquele que quiser
conservar sua vida, perde-la-á, e aquele que quiser perder sua vida, por
amor à verdade, a ganhará", já dizia o Cristo.
Jostein Gaarder aponta com muita propriedade que encontramos vertentes
místicas em todas as grandes religiões do mundo. "E tudo o que os místicos
escrevem sobre suas experiências apresenta visíveis semelhanças, a despeito
de todas as diferenças culturais. Somente quando o místico tenta uma
interpretação religiosa ou filosófica para a sua experiência é que se
evidencia o pano de fundo cultural". (Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia,
1995, p. 155).
Pelos trabalhos em Psicologia, especialmente na Psicologia Junguiana, na
Gestalt Terapia e nas terapias humanistas, e principalmente nas
Psicoterapias de orientação Transpessoal, sabemos que pessoas que não
pertencem a nenhuma religião têm passado e relatados experiências místicas.
Elas experiementam espontâneamente algo que chamam, entre outras coisas, de
"consciência cósmica" ou, como Freud chamava, de "experiências oceânicas":
neste momento, tempo e espaço e outras limitações físicas não passam de
figurações fantasiosas da percepção humana. A única coisa que existe é a
sensação de completude e consciência de se estar imerso e lúcido de uma
realidade maior e mais bela.
Bibliografia Sugerida
Campbell, Joseph, O Poder do
Mito, Palas Athenas São Paulo, 1990
Porfírio. Vida de Plotino/Eneadas I-II, Editora Gredos, Madrid, 1996.
Grof, Stanislav. Além do Cérebro - Nascimento, Morte e Transcendência em
Psicoterapia, McGraw-Hill, São Paulo, 1988
Reale, Giovanni & Antiseri, Dario. História da Filosofia Vol. I, Ed. Paulus,
São Paulo, 1990
Gaarder, Jostein. O Mundo de Sofia, Companhia das Letras, São Paulo, 1995
LeSham, Lawrence. O Médium, o místico e o físico, Summus Editorial, São
Paulo, 1993