Entre as
acusações contra Sócrates estava a de que ele estava introduzindo novos
daimonions, novas entidades divinas. Em sua Apologia, Sócrates
diz: "A razão (...) são aquelas acusações que muitas vezes e em diversas
circunstâncias ouvistes dizer, ou seja, que em mim se verifica algo de
divino ou demoníaco (...) uma voz que se faz ouvir dentro de mim
desde que eu era menino e que, quando se faz ouvir, sempre me detém de fazer
aquilo que é perigoso e que estou a ponto de fazer, mas que nunca me exortou
a fazer nada". Ou seja, o daimonion socrático era "uma voz" que lhe vetava
determinadas coisas, o que o salvou várias vezes de perigos e experiências
negativas (Reale & Antiseri, 1990, p. 95). Ela não lhe revelava nada, apenas
vetava algumas coisas que lhe eram perigosas.
O daimonion socrático é algo muito específico que diz respeito muito
particularmente à excepcional personalidade de Sócrates, colocando-se no
mesmo plano de um tipo de mediunismo que se fazia presente em certos
momentos de concentração muito intensa e em momentos de reflexão bastante
próximos aos arrebatamentos de êxtase em que Sócrates (assim como ocorria
com Buda, Plotino, Joana D'Arc, etc) mergulhava
algumas vezes e que duravam longamente, coisa da qual tanto Platão quanto
Xenofonte falam expressamente.
Jostein
Gaarder fala que as pessoas ainda hoje se perguntam por que Sócrates teve de
morrer. Então ele faz um paralelo entre Jesus e Sócrates: ambos eram pessoas
carismáticas e eram consideradas pessoas enigmáticas ainda em vida. Nenhum
dos dois deixou qualquer escrito, e precisamos confiar na imagem e
impressões que eles deixaram em seus discípulos e conteporâneos. Ambos eram
mestres da retórica e tinham tanta autoconfiança no que falavam que podiam
tanto arrebatar quanto irritar seus ouvintes. E ambos acreditavam falar em
nome de uma coisa que era maior do que eles mesmos. Ambos desafiavam
agudamente os que detinham o poder na sociedade, apontando sem piedade as
hipocrisias e falsos fundamentos em que se assentavam para cometer toda
sorte de abusos e injustiças. Foi isto que, no fim, lhes custou a vida.
Afinal, os que questionam são sempre perigosos para os poderosos e
pseudo-sábios de todas as épocas.
A maneira como Sócrates fazia as pessoas conhecerem-se a si mesmas também
estava ligada à sua descoberta de que o homem, em sua essência, é a sua
psyché. Em seu método, chamado de maiêutica, ele tendia a despojar a
pessoa da sua falsa ilusão do saber, fragilizando a sua vaidade e
permitindo, assim, que a pessoa estivesse mais livre de falsas crenças e
mais susceptível à extrair a verdade lógica que também estava dentro de si.
Sendo filho de uma parteira, Sócrates costumava comparar a sua atividade com
a de trazer ao mundo a verdade que há dentro de cada um. Ele nada
ensinava, apenas ajudava as pessoas a tirarem de si mesmas opiniões próprias
e limpas de falsos valores, pois o verdadeiro conhecimento tem de vir de
dentro, de acordo com a consciência, e que não se pode obter expremendo-se
os outros. Até mesmo na atividade de aprender uma disciplina qualquer, o
professor nada mais pode fazer que orientar e esclarecer dúvidas, como um
lapidador tira o excesso de entulho do diamante, não fazendo o próprio
diamante. O processo de aprender é um processo interno, e tanto mais eficaz
quanto maior for o interesse de aprender. Só o conhecimento que vem de
dentro é capaz de revelar o verdadeiro discernimento. Em certo sentido,
dizemos que quando uma pessoa "toma juízo", ela simplesmente traz à
consciência algo muito claro que já estava "dentro" de si. Assim, as
finalidades do diálogo socrático são a catarse e a educação para o
autoconhecimento. Dialogar com Sócrates era se submeter a uma "lavagem da
alma" e a uma prestação de contas da própria vida. Como disse Platão:
"quem quer que esteja próximo a Sócrates e, em contato com ele, põe-se a
raciocinar, qualquer que seja o assunto tratado, é arrastado pelas espirais
do diálogo e inevitavelmente é forçado a seguir adiante, até que,
surpreendentemente, ver-se a prestar contas de si mesmo e do modo como vive,
pensa e viveu".
Em seu método, ao iniciar uma conversa, Sócrates sempre adotava a posição de
uma pessoa ignorante, que apenas "sabe que nada sabe". E justamente
por usar esta afirmativa, ele forçava as pessoas a usarem a razão. Ele
entrava de tal forma na conversa, e de tal forma a dominava, que era capaz
de aparentar uma maior ignorância ou de mostrar-se mais tolo do que
realmente era. Seus discípulos mais fieis já sabiam que quando o opositor
caia nesta jogada, logo logo levaria um tombo tremendo quando o quadro se
invertesse. E esta era a principal técnica do método de Sócrates: usar a
ironia. Foi assim que le expos muito das fraquezas do pensamento ateniense.
Um encontro com Sócrates podia signifcar o risco de expor-se ao ridículo.
Mas as pessoas que passaram por isto e conseguiram superar o choque do
orgulho ferido, indo até o fim no processo cartático, acabavam por extrair
de si mesmo a resposta em tudo lógica e compatível com os problemas
expostos, dando-lhe a solução. O resultado é que o indivíduo sentia uma
verdadeira sensação de iluminação, de descoberta, de der dado à luz algo de
valioso que havia dentro de si, mas de que não tinha a mínima consciência.
Foi assim que Sócrates conquistou fervorosos discípulos. Mas se a pessoa
entregava-se ao orgulho ferido, tornava-se um inimigo feroz. E esta foi a
razão que lhe custou a vida.
Bibliografia Sugerida
"Sócrates" - Coleção Os Pensadores, Editora Abril,
São Paulo, 1987.
"Platão" - Coleção Os Pensadores, Editora Abril,
São Paulo, 1988.
Gaarder,
Jostein. - "O Mundo de Sofia", Companhia das Letras, São Paulo, 1995.
Reale,
Giovanni & Antiseri, Dario. - "História da Filosofia", Vol. I, Ed.
Paulus, São Paulo, 1990.