A Filosofia de Kant

Por Antônio Rogério da Silva

 

Divisão da Obra

A obra de Kant, geralmente, é dividida em duas grandes fases, a primeira chamada Pré-Crítica, que vai de 1755 a 1770, e a segunda de Criticismo, a partir de 1781. Seu primeiro texto impresso, no entanto, data de 1747, época em que ainda estava estudando na universidade. Chamava-se Pensamentos sobre a Verdadeira Avaliação das Forças Vivas, uma tentativa de conciliar as perspectivas de Descartes e Leibniz, cuja aplicação do método da matemática ao estudo das forças físicas considerava equivocado, uma vez que os conceitos de um método não se reduziam aos do outro. De 1755 até 1762, procurou Kant empregar a metafísica ao estudo da física, unindo racionalismo e experiência. Deste período, destaca-se História Universal da Natureza e Teoria do Céu, publicado anonimamente em 1755, mas que embora não tenha sido muito divulgado, antecipou a tese de Laplace (1749-1827) sobre a origem do sistema solar a partir de uma nebulosa primitiva.

Nessa fase pré-crítica, Kant versou por praticamente todos assuntos da física de seu tempo, além de geografia, lógica e estética. A partir de 1764, no entanto, volta-se com mais atenção para os temas de metafísica, ainda sob a influência forte de Leibniz, através da leitura de seu principal discípulo, o filósofo dogmático alemão Christian Wolff (1679-1754). Contudo, em 1766, decepcionado com a leitura de uma obra chamada Arcana Cealestia (1749 a 1756), do teólogo sueco Emmanuel Swerdenborg, Kant que já se deixava influenciar pelas idéias de Hume e Rousseau, publica anonimamente, Os Sonhos de Um Visionário. Neste pequeno artigo, já percebe-se o estilo crítico que irá ser consolidado duas décadas depois. Tantos eram os absurdos místicos desse visionário que Kant não teve outra explicação para tais equívocos, a não ser a crença na autonomia plena da razão, típica de filósofos racionalistas. Entre outras, Swerdenborg afirmava que o homem era fundamentalmente espírito, e se estivesse aberto para as coisas celestiais poderia entrar em contato com outros espíritos. Tudo isso, aplicando o sistema metafísico leibniziano. Kant considerou impossível para a razão humana, dentro de seus limites, provar a existência de outros seres puramente espirituais.

(...) [P]arece mais adequado à natureza humana e à pureza dos costumes fundar as esperanças do mundo futuro nos sentimentos de uma alma de boa índole que, pelo contrário, fundar sua boa conduta na esperança do outro mundo. (...) Assim pois, abandonemos à especulação e ao cuidado de mentes desocupadas todos os ruidosos artifícios teóricos a respeito de objetos tão distantes. De fato, nos são indiferentes; a fugaz ilusão das razões a favor ou contra o que possa decidir sobre o aplauso das escolas, sem embargo, dificilmente decidirá algo sobre o destino futuro dos homens honrados. Tampouco a razão humana está suficientemente dotada de asas como para atravessar nuvens tão altas como as que nos ocultam os segredos do outro mundo (...) (KANT, I. Os Sonhos de um Visionário, II parte, cap. 3, p. 111).

Por fim, para conseguir entrar definitivamente na Universidade de Königsberg, Kant defende a famosa Dissertação de 70, ou Acerca da Forma e dos Princípios do Mundo Sensível e do Mundo Inteligível, onde lança a linha de pesquisa e os conceitos principais que orientarão a estrutura arquitetônica de sua fase crítica. Já em Os Sonhos de um Visionário, Kant considerava a necessidade da razão pura reconhecer seus limites, a fim de evitar o ridículo de defender absurdos como o do teólogo sueco. Agora com a Dissertação de 70, tal limitação se estabelece pela distinção daquilo que é possível perceber como adquirido pela sensibilidade, os fenômenos externos do mundo, e à inteligência, o conhecimento racional dos númenos, isto é aquilo que se apresenta à mente como coisa em si e não para nós como os eventos materiais, em geral. Posto isso, procura delinear as formas do mundo sensível ou como a sensibilidade opera por intermédio do tempo e do espaço e como o entendimento pode conhecer algo a priori, antes de qualquer experiência, ou a posteriori, depois da experiência. Projeta, então um método de análise dos temas metafísicos que só será exposto por inteiro 11 anos depois na primeira crítica, a Crítica da Razão Pura.

O Criticismo Kantiano

Antes de Kant, a filosofia oscilava como o pêndulo de Galileu, entre o materialismo e empirismo de um lado e o inatismo e racionalismo de outro. Dogmáticos idealistas e céticos naturalistas revezavam-se no posto de quem proferiria a última palavra sobre o entendimento humano. Desde 1770, Kant impôs-se como tarefa parar com essa troca constante de posições propondo uma investigação sobre como a metafísica era possível de ser entendida por ciência. Deveria então a crítica filosófica encontra um objeto, ou a fonte de conhecimento, ou ainda o modo de pensar que fosse peculiar à metafísica. Caso essa pesquisa apontasse resultados negativos, as pretensões metafísicas de ser uma ciência própria deveriam ser afastadas de vez.

A Critica da Razão Pura, cuja primeira edição saiu em 1781, iniciou essa tarefa de forma sistemática, procurando as características típicas da metafísica, ou do conhecimento filosófico puro. Kant pensava que a física, a matemática e a geometria de seu tempo já haviam encontrado formas de conhecimento que satisfaziam seu estatuto científico, enquanto a metafísica não era capaz de fornecer, sequer, um juízo sintético a priori. Calma! Com isso Kant queria dizer que para uma atividade ser considerada científica era preciso que ela apresentasse proposições, ou enunciados, que fornecessem informações adicionais sobre o sujeito estudado e, além disso, que transcendessem a qualquer experiência, isto é, que fossem entendidas sem o recurso das relações das coisas materiais. Tal juízo deveria estar puro de um contato empírico, como instrumento da razão humana. A posse de um conhecimento puro seria importante para qualquer ciência, uma vez que tal conhecimento garantiria a sua necessidade.

A experiência ensina que uma coisa pode ser constituída de uma maneira ou de outra, mas nada diz se o que está sendo observado não possa ocorrer de forma diferente (2). Essa lição Kant já havia aprendido com Hume. Tratava-se então de encontrar um juízo necessário para toda metafísica poder ficar de pé. Mas antes, é importante primeiro fazer algumas distinções e definições. Assim sendo, Kant começa por definir a diferença entre juízos analíticos e sintéticos. Por analíticos entendem-se os juízos cujos predicados fazem parte da identidade do sujeito. Por exemplo, se o ouro for definido como metal amarelo maleável, ao se emitir um juízo que enuncie ser ouro amarelo, este juízo será analítico e nenhum conteúdo acrescenta ao conceito de ouro. O que vale dizer que todos juízos analíticos são apenas explicativos. Já os juízos sintéticos trazem em seu predicado uma informação que não pode ser extraída do conceito do sujeito e que, portanto, se encontra fora de sua definição. Dizer que "alguns corpos são pesados" amplia o conhecimento que se tem do conceito geral de corpo, sendo então um juízo extensivo, por estender a compreensão que se tem previamente do sujeito. Todos juízos analíticos são concebidos a priori, ao passo que os sintéticos poderiam ser a posteriori, com origem na experiência, ou a priori, formados no entendimento puro e na razão pura (3).

Todas as ciências teóricas - a matemática, geometria e a física -, imaginava Kant, teriam juízos sintéticos a priori como seus princípios fundamentais, caberia à metafísica encontrar seus princípios sintéticos uma vez que ela teria como fonte apenas o conhecimento puro a priori. O próximo passo para solucionar esse problema foi descrever a estrutura da razão que produz tais juízos. Na "Doutrina Transcendental dos Elementos", primeira divisão da Crítica da Razão Pura, Kant apresenta em primeiro lugar sua "Estética Transcendental", onde descreve os princípios da sensibilidade a priori. A sensibilidade, nesse sentido, seria a capacidade de receber representações do objetos percebidos. Através da sensibilidade os objetos são dados e a intuição empírica é fornecida, de acordo com as sensações provocadas pelos objetos. Os objetos da intuição empírica são chamados fenômenos. Os conceitos relativos aos fenômenos são gerados pelo entendimento, tendo por base apenas as intuições da sensibilidade. Além das intuições empíricas, a sensibilidade forneceria as intuições puras como formas próprias que não dependem de um objeto real dos sentidos, mas são a condição para que estes sejam percebidos em sua extensão e duração. Tais intuições puras a priori seriam o sentido externo do espaço, onde os objetos são representados como sendo do lado de fora do sujeito, e o sentido interno do tempo que representa dentro do sujeito a sensação de passagem ou permanência de um objeto. Tempo e espaço não seriam conceitos empíricos, mas a condição da sensibilidade para que a experiência seja possível, portanto, antecedem a esta e são intuições puras a priori (4).

Depois disso, resta descrever como o entendimento gera as representações e o entendimento daquilo que é percebido pelo sensibilidade. A Lógica transcendental vem determinar a origem e o alcance desses conhecimentos. Na estética, Kant concluiu que só é possível ter intuições sensíveis e que as supostas intuições puras, nada mais são que as formas puras da sensibilidade - espaço e tempo - que permitem a recepção externa e interna dos objetos. Portanto, apoiado em intuições sensiveis o entendimento deverá pensar os objetos, a fim de gerar o conhecimento, pela união da intuição com o pensamento. Não obstante, para que seja um conhecimento puro, como convém à metafísica, a lógica trancendental deve analisar se existe algum conceito que seja puro e independente da sensibilidade. Seria então esse conhecimento oriundo de idéias trancendentais. Ao longo da primeira crítica, Kant se esforçou em tentar mostrar a impossibilidade do entendimento em resolver dos problemas inerentes às idéias psicológicas, da existência da alma ou de sujeitos absolutos; cosmológicas, sobre a origem e infinitude do universo; e teológicas, existência de um ser supremo (5).

Em sua obra seguinte, Prolegômenos (1783), Kant resume toda essa discussão na constatação que a indecisão quanto aos problemas da antinomia das idéais transcendentais leva à limitação do uso da razão ao conhecimento empírico.

Servi-me para o início desta observação da imagem sensível de um limite, para fixar as barreiras da razão em relação ao uso que lhe é apropriado. O mundo dos sentidos contém meros fenômenos, que ainda não são coisas em si mesmas. Estas últimas (númenos) devem ser admitidas pelo entendimento, justamente pelo fato de ele conhecer os objetos da experiência como simples fenômenos. (...) A experiência, que contém tudo o que pertence ao mundo dos sentidos, não se limita a si mesma; de cada condicionado, chega sempre só a outro condicionado. O que deve limitá-la encontra-se necessariamente fora dela, e este é o campo dos puros entes de entendimento. Mas este é para nós espaço vazio, em se tratando da determinação da natureza destes entes de entendimento e, portanto, se temos em vista conceitos dogmamente determinados, não podemos ir além do campo da experiência possível. (...) Mas a limitação do campo da experiência por algo, que aliás lhe é desconhecido, é um conhecimento que resta à razão neste ponto, mediante o qual ela não se encerra dentro do mundo dos sentidos, nem vagueia fora do mesmo, mas, como convém ao conhecimento do limite, circunscreve-se apenas à relação daquilo que está fora dela com o que está contido dentro do mesmo limite (KANT, I. Prolegômenos, III parte, § 59, p. 83).

Dentre as antinomias que correspondem aos conflitos em que as idéias transcendentais podem suscitar argumentos contra e a favor, aquela que diz respeito à cadeia causal de eventos cosmológicos, também conhecida como a "Terceira Antinomia", coloca um problema cuja solução interessa diretamente à moral. Em suma, o problema que a razão pura aqui se põe é saber se há uma causa necessária que determine o desenlace de toda série causal entre as coisas no mundo, ou caso contrário se esta causa não existe e tudo ocorre de forma livre e contingente da série causal, a grosso modo. Com intuito de preservar a liberdade em um mundo de fenômenos estritamente determinados, Kant propõe na primeira Crítica que as ações livres tenham que se relacionar apenas com uma causa inteligível no sujeito, independente da sensibilidade e que pode condicionar algum evento fenomênico (6). Esse tipo de solução visou atender um uso prático da razão cuja fundamentação apareceria no texto que antecedeu a segunda Crítica, Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785).

Crítica Moral e Estética

A Fundamentação tem por objetivo encontrar um princípio supremo para a moralidade que valesse por si mesmo sem se vincular às consequências. Tal como na metafísica criticada na obra anterior, a ética deveria seguir o plano de uma arquitetônica racional e separar os elementos empíricos do puramente racional, a fim de descobrir as fontes a priori de seus princípios. Por conta disso, descarta-se de imediato que a felicidade possa ser o fim de toda ação moral, posto que os instintos poderiam, neste caso, indicar com melhor exatidão os fins naturais de conservação e bem-estar, do que a razão (7).

Uma lei para ser considerada racionalmente válida deve ser universal e seguir sua orientação segundo a máxima de uma vontade boa e livre. O dever constitui-se como a necessidade dessa vontade respeitar a lei prática. Apenas os seres racionais seriam dotados dessa vontade e da capacidade de agir segundo os princípios universais. O mandamento da razão prática corresponde a um princípio que obriga a vontade, sendo os imperativos sua forma privilegiada. Entre as fórmulas do imperativo, a categórica diz que uma ação deve ser considerada como objetivamente necessária por si mesma, sem ter em mente qualquer outro fim que não o cumprimento do dever. Na moralidade, o imperativo categórico representa um juízo sintético a priori da razão prática. O único imperativo categórico do qual se pode gerar todos os outros imperativos do dever se expressa pela proposição prática: "age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio" (8). Para descobrir tal lei moral em si mesmo cada sujeito deveria encontrar entre suas máximas de ação, aquela que fosse aceita como válida universalmente por outros seres racionais. Assim, cada um seria ao mesmo tempo legislador e súdito de sua lei moral e cada ser racional reunido em uma comunidade em que cada membro é um fim em si que se relacionam: o reino dos fins. Nessa condição, cada ser racional é autônomo e livre para determinar suas ações. Entretanto, como único ser a pertencer ao mesmo tempo ao reino dos fins e ao mundo sensível, seu conhecimento de um conceito moral a priori fica comprometido. Cabe então à razão marcar as fronteiras do entendimento entre o mundo sensível e o inteligível. A vontade pertence ao mundo inteligível e pode, como havia sido descoberto na primeira Crítica, determinar ações no mundo sensível. A boa vontade está livre da sensibilidade e está separada das inclinações e apetites de uma vontade sensível. Toda essa liberdade, no entanto, como na quarta antinomia, não tem como ser demonstrada dentro dos limites de uma razão humana (9).

Nos limites da Fundamentação, apenas o sentimento moral pode explicar o fato de haver nos homens o interesse em aplicar as leis morais. Porém, para não ter de reconher a validade da concepção empírica da moral humeana, na Crítica da Razão Prática (1788), Kant apelou para um arbitrário faktum da razão como fundamento de toda inspiração moral incondicionada nos seres humanos (10). A trilogia do criticismo completa-se em 1790 com a publicação da Crítica do Juízo. Agora, Kant tenta descobrir se a faculdade de julgar o gosto estético de prazer ou desprazer pode estar também submetida a princípios a priori. Mais uma vez, defronta-se com a dificuldade em tornar objetivos juízos subjetivos. Coloca, entretanto, de uma forma mais plausível, que os juízos estéticos com pretensão de universalidade podem no máximo ter o direito a ser considerados de valor universal, apenas se obtiverem o acordo de outras pessoas, segundo uma concepção finalista da natureza que oriente as escolhas segundo um fim próprio humano.

Além dessa monumental obra, Kant continuou escrevendo um conjunto de opúsculo que trataram de outros temas metafísicos, de história, política, lógica e antropologia. No final da primeira crítica, Kant revelou que seu programa filosófico visava responder a três questões: 1. O que se pode saber? 2. O que se deve fazer? E em 3. O que se é permitido esperar? Em seu manual de Lógica acrescentou uma quarta questão: O que é o Homem? As duas primeiras questões, tentou responder com as duas primeiras Críticas, mas a terceira e a quarta só se encontram as respostas em seus opúsculos finais.