O nascimento de Ganesha
Quando a Deusa Pârvati tomava banho, Shiva, empurrando Nandi, que vigiava a
entrada, entrou sorrateiramente no aposento. A deusa ficou muito
constrangida...Decidiu então criar para si um servidor e, com as raspas de
sua pele, fez um rapaz.
"Era um belo adolescente, bem proporcionado, grande, vigoroso e bravo. Ela
disse-lhe: 'Você é meu filho e só a mim pertence.' Ele prometeu obedecer-lhe
em todas as coisas. A deusa, encantada, cobriu-o de carícias e o abraçou.
Colocou-o, armado com uma clava, diante de sua porta. Quando Shiva quis
entrar, o rapaz impediu-o e, apesar das injunções do deus, não o deixou
passar. Shiva, furioso, enviou então seus Ganas, exército de gênios e
diabretes, para livrá-lo do importuno. Longas parlamentações e intermináveis
brigas seguiram-se.
O fiel guardião foi vitorioso...Quando viu o exército dos deuses juntar-se
aos ganas para atacar o valente rapaz, a Mãe do mundo delegou dois de seus
poderes, ou shaktis, sob a forma de diabas, para ajudar seu filho. Uma
dessas diabas, que tinha um aspecto terrível, mantinha-se de pé. Sua boca
aberta era grande como a caverna da Montanha negra. A outra tinha aparência
do raio e inúmeros braços. Era enorme e terrível, pronta para golpear todos
os que se aproximassem. Na batalha, as duas shaktis pegavam com a boca os
projéteis lançados pelos deuses e ganas, e lançavam-nos novamente a
eles...Quando Vishnu quis atacar o filho da deusa, as duas shaktis
integraram-se ao corpo do rapaz e deram-lhe, desse modo, uma força maior.
Mesmo o exército dos deuses foi derrotado pelo corajoso rapaz. Finalmente,
quando ele estava ocupado no combate a Vishnu, o próprio Shiva,
traiçoeiramente, cortou-lhe a cabeça com o tridente.
Ao ver o desgosto da deusa e para acalmá-la, Shiva ordenou imediatamente que
fosse substituída a cabeça do jovem pela do primeiro ser vivo
encontrado...Foi um elefante, cuja cabeça foi unida ao corpo ressuscitado e,
para consolar a deusa, Shiva o nomeou Ganesha, chefe dos Ganas (exércitos
celestes)."
(Shiva Purâna, Rudra Samhitâ, caps. 13-18, cit. Alain Danielou, Shiva e
Dioniso
A simbologia da história de Ganesha
Ganesha é filho de Shiva e Parvati. O nome deriva da combinação das palavras
sânscritas Gana (multidão, exército) e Isha (Senhor) = Ganesha - Senhor de
todos os seres. O mito sobre Ganesha, conforme está escrito nos Puránas, nos
conta que Shiva ausentava-se muito de casa e passava longos períodos de
retiro nas montanhas. Nessas ocasiões, Parvati ordenava a um guardião que
não permitisse a entrada de ninguém em seu palácio sem sua autorização.
Todos os guardiões, entretanto, falharam em seguir a ordem de Parvati quando
se tratava de Shiva querendo entrar em sua própria casa. Parvati decidiu,
então, colocar uma pessoa que obedecesse somente ordens suas e não deixasse
nem mesmo Shiva entrar, e criou de sua própria matéria um boneco dando-lhe
vida como seu filho, tornando-o seu guardião particular.
Um dia, Shiva em pessoa, voltando do Kailasa, quis entrar no palácio de
Parvati, enquanto ela se banhava, e o menino impediu Sua passagem. Nenhum
argumento foi suficiente para que ele mudasse sua atitude de obediência
incondicional a Parvati. Seguiu-se uma luta feroz entre o exército de Shiva
e Ganesha, o qual lutou bravamente contra todos e resistiu durante muito
tempo até ter sua cabeça mortalmente separada do tronco pelo trishula de
Shiva. Parvati, ao ver seu filho morto, ameaçou desabar o mundo com sua ira.
Shiva, então, apercebendo-se do alcance desse seu ato, arrependeu-se e pediu
a Parvati seu perdão. Ela consentiu em perdoá-lo com a condição de que ele
restituisse a vida a seu filho. Shiva, então, deu ordem a seus Ganas que
fossem em direção ao norte e trouxessem a cabeça do primeiro ser vivo que
encontrassem no caminho. Aconteceu assim que foi um elefante com uma das
presas quebradas que eles encontraram. Então Shiva colocou a cabeça desse
elefante no corpo do menino e este reviveu, com cabeça de elefante. Shiva
reconheceu-o como seu filho, dando-lhe o nome de Ganesha.
Como todas as lendas encerram dentro de si um significado maior, vamos
descobrir a simbologia da estória de Ganesha. Primeiro, a estorinha mostra
que Ganesha tem um corpo físico "criado" por Parvati, símbolo da matéria
perecível, ou seja, que é humano. Mostra também que ele "não conhece" o pai
(Shiva, a Realidade Suprema). Quando Parvati solicita sua proteção ele a
obedece incondicionalmente (cuida da matéria, é apegado a ela). Quando seu
pai "chega", luta com ele (não quer perder a individualidade), não o
reconhece, mas luta com bravura, quer cumprir o seu dever. O pai admira sua
coragem mas, não podendo deixá-lo vencer, corta sua cabeça (o ego, a mente,
a arrogância) e ele "morre". Parvati, zangada com a "morte" do filho, mostra
a matéria não querendo perder seu "nome e forma". Shiva coloca uma "nova
cabeça" no filho, que renasce pelas mãos de Shiva, nascendo do Supremo.
Parvati, ficando contente com as promessas de Shiva de que seu filho será
reverenciado no início dos rituais e cerimônias e antes de qualquer
empreendimento, mostra que a "perda" da individualidade é o ganho do
Absoluto, da Plenitude. O sábio vence todos os obstáculos e depois "morre",
"perde a cabeça", para ganhar uma "nova" dada por Shiva, o Absoluto.
Os dois primeiros passos para a auto-realização, Svaranam, escutar o
Ensinamento, e Mananam, refletir sobre ele, são representados pelas enormes
orelhas e cabeça de elefante. A tromba representa Viveka, a capacidade de
discriminação que sempre desponta da Sabedoria. O intelecto do homem comum
está sempre preso entre os pares de opostos (as presas). O sábio não é mais
afetado por esses pares de opostos (frio-calor, prazer-dor,
alegria-tristeza, etc), tendo atingido um estado de eqüanimidade
(representado pela presa quebrada) e com sua discriminação compreende o
mundo material e o transcendental, como a tromba que faz trabalhos
grosseiros (arranca árvores, etc) ou sutis (pega uma folha do chão). O sábio
nunda esquece sua verdadeira natureza (memória de elefante). A barriga
enorme representa sua capacidade de "engolir, digerir e assimilar" todos os
obstáculos, assim como o Ensinamento escutado, transformando-se nesse
Conhecimento vivo. O ratinho que fica a seus pés simboliza o desejo, com sua
voracidade e cobiça, freqüentemente roubando mais do que pode comer e
estocando mais do que pode lembrar. O sábio tem o desejo sob total controle.
Por isso o rato olha para cima e aguarda sua permissão para "comer" os
objetos dos sentidos. Representa também seu veículo, isto é, o sábio
tentando passar sua Sabedoria Infinita através de seus equipamentos finitos
(corpo e mente).
Reflexões sobre o mito purânico de Gajamukha
Se você visitar a Índia, verá freqüentemente imagens do deus Shiva
cavalgando um touro branco, Vishnu voando sobre uma imensa águia ou
Sarasvati atravessando o universo num belo cisne. E, certamente, o que mais
irá chamar sua atenção, é o fato de que Ganesha, o deus com cabeça de
elefante, cavalga um rato. Você poderá perguntar: mas porquê um rato?
Esses animais que aparecem junto aos deuses hindus são os veículos divinos,
que em sânscrito se chamam vahanas. Os vahanas são expressões, aliados ou
formas de energia, que chegam onde os próprios deuses não conseguem chegar.
Com Ganesha é diferente.
Ganesha está associado na Índia com a boa sorte e a prosperidade. Porém, na
tradição do Yoga, ele é muito mais do que isso. Os Puranas são uma extensa
coleção de crônicas de deuses, heróis e sábios da Índia antiga. Eles foram
elaborados pelos sábios de antigamente para nos ensinar através de
metáforas. Algumas das histórias que encontramos neles têm como objetivo nos
ajudar a lembrar algumas lições essenciais na vida espiritual.
A história que segue, e que responde à pergunta do título, é uma das mais
importantes dos Puranas. Ela narra a batalha que o deus-elefante travou
contra o demônio Gajamukha. Gajamukha era um yogi que, devido a austeridade
de suas práticas espirituais, tinha se tornado tão poderoso que era
considerado invencível. Infelizmente, como acontece com alguns yogis,
perdeu-se no caminho e acabou utilizando sua energia espiritual para fazer o
mal. As coisas ficaram críticas para a estabilidade do mundo quando ele
expulsou os deuses do céu. Estes, aterrados e, sem poder fazer nada para
deter o demônio, chamaram Ganesha para que os ajudasse.
No início do confronto, o deus-elefante não pôde fazer muita coisa, pois
Gajamukha era realmente poderoso e nenhuma arma utilizada contra ele
conseguia atingi-lo. Eles se digladiaram nos céus por milênios, esgotando
suas energias, sem que nenhum dos dois lutadores conseguisse sobrepujar o
outro. No fim, Ganesha fez um grande sacrifício e arrancou sua própria presa
direita, arremessando-a ao demônio com tanta força concentrada que este
ficou seriamente ferido. Ao mesmo tempo, Ganesha lançou-lhe uma maldição,
condenando-o a transformar-se num rato. O sortilégio funcionou e Gajamukha
virou um roedor. Imediatamente, Ganesha saltou sobre o rato e começou a
cavalgá-lo.
Qual é a lição espiritual escondida nesta história esquisita? Neste mito, o
deus-elefante representa a Consciência Pura (Purusha, em sânscrito). O
elefante simboliza o imenso poder dessa Consciência, que é a essência de
cada ser humano. Com sua força inigualável, o elefante é capaz de realizar
proezas que nenhum outro animal conseguiria fazer. No entanto, ele
dificilmente irá machucar alguém. Ao mesmo tempo, este animal é muito
inteligente, sensível, protetor e solidário com seus companheiros. Essas
qualidades, aliadas à sua índole pacífica e amorosa, o tornam um ótimo
símbolo da Consciência Pura.
No outro extremo, o rato, com seu jeito inquieto, simboliza a mente humana,
sempre correndo de lá para cá, perdendo-se em experiências, pensamentos ou
fantasias. A mente, assim como o rato, está sempre nervosa, faminta e com
medo, e fica continuamente procurando novas experiências para alimentar seus
infinitos desejos. E, assim como o rato tem hábitos noturnos, a mente parece
estar sempre escondendo-se e fugindo da luz do espírito, preferindo caçar
furtivamente nas sombras do desejo.
A mente pode ser um belo aliado na caminhada espiritual, mas pode igualmente
tornar-se um sério obstáculo, obliterando a luz da Consciência. Quando ela é
utilizada de maneira negativa e egoísta, pode ser nefasta. Você não precisa
procurar demasiado para achar os Gajamukhas da nossa era: terrorismo,
corrupção e violência são alguns dos demônios que assombram nossa
civilização. Porém, é possível que identifiquemos nossos próprios demônios
interiores: os Gajamukhas do medo, do ódio ou do sofrimento, travando uma
batalha diária para suprimir a Consciência.
Quando isto acontecer, está na hora de Ganesha entrar em ação e lutar para
colocar sob seu controle as forças negativas da mente. É provável que um
rato não consiga enxergar o tamanho real de um elefante. Da mesma forma, é
provável que nossas mentes sejam incapazes de perceber a força interior
escondida no mais fundo da nossa alma. Quando temos a oportunidade de que
nossa alma nos revele sua felicidade intrínseca, a energia mental é
automaticamente colocada para trabalhar construtivamente para nosso bem.
Se você olhar para uma imagem qualquer de Ganesha, verá que sua presa
direita está sempre faltando. Lembre que ele aniquilou o demônio com ela.
Através deste símbolo, os sábios estão nos dizendo que ele está além das
dualidades e que sua mente está em estado de unidirecionalidade.
O nome Ganesha deriva da combinação de duas palavras: gana (mais comumente
grafada guna) e isha. Os ganas ou gunas são os ingredientes que determinam a
forma do universo, ou melhor, as formas em que a natureza se auto-organiza:
inércia, ação e equilíbrio (tamas, rajas e sattva). Isha significa
inteligência, controle, controlador. Ganesha, portanto, é a inteligência que
dirige e organiza as forças da natureza. É por isso que Ganesha é, entre
outros atibutos, o senhor do karma, aquele que controla e dirige a lei de
causa e efeito.
É provável que os símbolos contidos neste e noutros mitos hindus surpreendam
a mente ocidental. No entanto, uma imagem que no início possa parecer
grotesca, como a idéia de um deus com cabeça de elefante, oferece camadas e
mais camadas de significações diferentes, que nos serão reveladas somente
quando compreendermos que estes símbolos não foram escolhidos
aleatoriamente. Eles foram cuidadosamente vislumbrados pelos sábios de
outroura para nos ajudar a entender hoje algumas coisas importantes sobre
nós mesmos como, por exemplo, quem nós somos e onde podemos chegar.