Por uma destas "coincidências" do destino, o
mundo pode ocasionalmente maravilhar-se com o extremo encanto do florescer
simultâneo de várias e ricas civilizações através do mundo que, apesar de
suas diferenças étnicas e culturais, guardam, em seu âmago, impressionantes
similaridades com respeito a um conjunto de percepções e pensamentos - que
podemos chamar de filosóficos -, através dos seus legados intelectuais, em
especial os que versam sobre a grande questão do porquê da existência, da
natureza e de suas várias formas de manifestação, e o papel e lugar do homem
em tudo isso.
O pipocar simultâneo de novas e profundas
idéias em um período específico da humanidade, ou o surgimento pralelo de
grandes - porém, em certo ponto, similares - sistemas e transformações no
pensamento humano, teve uma especial florescência em meados do século V a.
C. quando, em lugares tão diversos quanto a Grécia, Índia, Pérsia, Palestina
e China, vemos surgir vultos que marcariam para sempre a história humana,
como Sócrates, Péricles, Buda, Zoroastro, Isaias, Confúcio e Lao-Tsé.
Embora costume-se diferenciar as culturas do
ocidente e do oriente como sendo extremamente diversas (e, em certo sentido,
o são de fato), existem muito mais pontos de contato e de semelhanças entre
elas do que se é comumente aceito, em especial no que diz respeito ao
pensamento especulativo ou filosófico. A vaidade e o orgulho intelectuais de
nossos meios acadêmicos ocidentais geralmente torcem o nariz diante da
expressão "filosofia oriental", tendo em vista que por filosofia se tem em
mente toda a tradição do pensar que teria se originado entre os gregos.
Porém, se paramos para comparar as obras que nos chegaram tanto de
pensadores gregos como de pensadores orientais, particularmente hindus e
chineses, fica difícil não aceitar que um tipo de clima intelectual bem
específico parecia se expressar tanto em uma como em outra civilização -
apesar da roupagem cultural diversa. Por exemplo, as similaridades entre os
fragmentos de Heráclito, filósofo grego pré-socrático, e os escritos
taoístas de Lao-Tsé hoje já são bem conhecidos. Ambos possuiam uma percepção
orgânica e holística do mundo, visto como uma manifestação dinâmica de uma
realidade profunda, transcendente e implícita que dá origem a tudo o que
existe, e cuja principal característica, sua única constante, é exatamente a
contínua transformação das coisas com vistas à renovação e ao equilíbrio
dinâmico de tudo o que há. E é exatamente ao "Velho Mestre" (tradução do
nome Lao-Tse) chinês, que viveu entre aproximadamente 604 a 527 a. C. tendo,
pois, sido contemporâneo (embora fosse cerca de 50 anos mais velho) de
Confúcio, que iremos estudar agora, sem a prentesão, é lógico, de esgotar
algo sobre o assunto, mas visando apenas a servir de apresentação ao encanto
dos ensinos de um velho mestre que, sendo quiçá uma figura mais lendária que
real, de qualquer forma nos deixou um poema de grande e profundo valor
espiritual, e que vem chamando a atenção do ocidente ao mesmo tempo em que
os extremos de um materialismo mecancista exarceberdo, embalado nos valores
anti-humanistas do Capitalismo atualmente vencedor, tem destruído nossos
valores mais expressivos em prol de uma atitude extremadamente competitiva e
mecanicista no Ocidente - atitudes que, igualmente, vêm invadindo o Oriente
e mesmo levando a um processo de quase extinção às tradições espirituais das
civilizações asiáticas.
É a Lao-Tse e à sua obra poética, conhecida
como Tao Te King, (traduzido geralmente como algo do tipo "O Livro do
Sentido da Vida" ou "O Livro do Caminho Perfeito") que prestaremos homenagem
na forma de Home Page, já que a tecnologia (em especial quando empregada
como meios para a felicidade humana, e não como um fim em si) também é
expressão da evolução e dos desíginios do "Tao"...
Vestígios do Velho Sábio
Sabemos muito pouco sobre quem foi Lao-Tsé
(ou Lao-Tzu). O resgistro mais antigo ainda existente sobre O Velho Sábio
data de cerca do ano 100 antes de Cristo, ou seja, de mais de 300 anos
depois da morte de Lao-Tse (muito embora possuamos vários fragmentos com
versos do Tao Te King ainda mais antigos que os textos que versam sobre a
vida do Velho Sábio). Segundo um velho livro chinês chamado "Apontamentos
Históricos" (Shi Chi), escrito por um historiador imperial do tempo da
dinastia Han, o nome real de Lao Tse seria Erh Dan Li. Ele teria nascido nos
confins do sul China, num estado considerado atrasado à época, chamado Ch'u,
em cerca de 604 a.C.
O jovem Erh Li teria desde cedo demonstrado
uma personalidade afável e doce, ao mesmo tempo que se mostrava muito
dedicado aos estudos, tendo recebido do pai, com a ajuda de outros parentes
e amigos, meios para entrar em contato com mestres chineses, recebenedo uma
sólida formação clássica com respeito ao pensamento de seu país. Esta
bagagem cultural, ao lado de sua personalidade cálida e disciplinada, o
levariam ao posto de arquivista imperial na corte de Lo-Iang (517 a.C.).
Sabemos que foi nesta posição funcional que Lao Tse veio a receber a visita
de outro grande mestre da China, Confúcio, ainda em fase de amadurecimento
para o ministério que, àquela época, ainda estava dando seus primeiros
passos. Mas o contato entre ambos aparentemente não demonstrou ser muito
produtivo, ao menos naquele instante. Confúcio estava por demais dedicado a
um ideal coletivo e político, procurando estabeler as regras da convivência
social perfeita, enquanto Dan Li estava mais preocupado com a questão da
percepção pessoal da relação entre o homem e o transcendente. De fato, como
hoje vemos, as duas atitudes são complementares e harmônicas, já que tudo na
natureza parece demonstrar vertentes básicas complementares: tanto a da
auto-afirmação e integração com semelhantes ou seres deversos, como de
auto-transcendência e evolução (singular e coletiva). Posteriormente as
contribuições de Lao Tse e a de Confúcio, juntamente com a doutrina de Buda,
importada da Índia, iriam se amalgamar e formar os "três ensinamentos
básicos" que iriam sustentar a cultura chinesa, embora com o predomínio dos
ensinos de Confúcio. Com a chegada dos missionários cristãos à China, no
século XVI, o povo desta terra não teve muita dificuldade em ver pontos de
similaridades entre os ensinos de Cristo e os dos outros três mestres, muito
embora o ponto de vista dos missionários católicos tivessem sido, como era
de se esperar, ordinariamente, outro...
Quando a situação política da China começou a
se deteriorar (a China de então não era mais que um conjunto de estados
semi-independentes, baseados numa estrutura de clãs frequentemente em
conflito entre si), destruindo, de início lentamente, mas posteriormente de
forma crescente, a ordem que se mantinha até então (num processo muito
semelhante ao que ocorreu na Grécia no processo de conflito que acabou no
desastre da Guerra do Peloponeso), o velho mestre achou que tinha chegado a
hora de se retirar, já que o momento era a da vigência das forças de ação,
de transformação radical, de valores "yang" enfim, enquanto que o Velho
Sábio estava por demais possuído de valores introvertidos, de meditação e
conciliação de valores complementares "Yin". Isso se deu por volta do ano
531 a. C.
O Velho Mestre achou por bem passar o resto
de seus dias em contato íntimo com a natureza (que, por sinal, na China é de
uma beleza arrebatadora). Para isso, ele resolveu se recolher às regiões
onde as batalhas dificilmente fossem percebidas, em especial, perto da
fronteira. Ordinariamente esta ação é representada pela ilustração de um
velho montado em um touro, algumas vezes em companhia de um jovem aprendiz
que o segue ao lado da montaria. Mas esta imagem também representa uma
mensagem: mostra que o Velho Sábio soube domar o universo instintivo mais
primitivo do homem ao mesmo tempo em que ensinava o caminho aos mais jovens
que, por sinal, viam no Sábio um companheiro... Tendo chegado à fronteira da
China Central, conta-se que um oficial, ao reconhecê-lo, disse que só o
deixaria seguir adiante se lhe deixasse algo escrito que lhe servisse de
roteiro para a sabedoria. De início Lao Tse teria recusado, por que nada de
realmente significativo e profundo poderia ser dito rapidamente em linhas
escritas, mas diante da insistência do rapaz, o velho sábio se sentou em uma
pedra, perto de uma grande árvore, e teria composto os 5000 idiogramas que
formam o Tao Te King. Depois disso, o mestre teria continuado sua marcha
rumo ao ocidente... e nunca mais se soube nada do Velho Sábio...
O Taoísmo
Já falamos, en passant, das duas maiores
escolas tradicionais chinesas, Confucionismo e Taoísmo. Destas, enquanto o
confucionismo seria mais aproximado de uma doutrina ética, política e
pragmática, visando à melhor convivência em sociedade e ao modo de como se
comportar em público em em relação à transcendência (mas sem se ocupar de
questões especificamente religiosas), o taoísmo apresenta-se como uma
abordagem mística (no sentido real do termo, e não no sentido vulgar como o
vemos empregado frequentemente na mídia), que busca resgatar o contato entre
o homem e o o meio natural e transcendente que o cerca, retomando o
conhecimento intuitivo, profundo, que se encontra na própria alma do homem,
e que é frequentemente ofuscada pela fragmentação do conhecimento racional
convencional, sempre mais fragmentante e sempre mais fragmentário.
Reconhecendo que a técnica da racionalidade, apesar de válida em certos
aspectos, é limitante e ansiogênica - por sempre expor mais e mais questões
que levam a outras questões, num processoe de corte e fragmentação sempre
crescente que nos leva a perder a visão do conjunto -, o taoísmo é um
caminho que busca dosar as duas asas do homem: o conhecimento intelectual e
o intutivo, razão e emoção.
Vejamos aqui alguns trechos taoístas
(extraídos, com adaptações, do excelente livro "O Tao da Física", escrito
pelo físico Fritjof Capra. Cf. Bibliografia):
[Sobre a transcendência implícita que
sustenta o mundo, o Tao] O conhecimento mais amplo não o conhece
necessariamente; o raciocínio [por si] não tornará os homens sábios. Os
reais sábios decidiram-se além destes dois métodos. A Controvérsia é uma
prova de não se vê com clareza (página 90).
Os taoístas conseguiram ter uma profunda
percepção dinâmica da natureza, bem semelhante à que os físicos modernos vêm
formulando, e extraordinarimente similar aos preceitos formulados pelo
filósofo grego Heráclito quase que na mesma época que Lao Tse, ou seja, a de
que a transformação e a mudança são as únicas reais constantes da natureza
que nos cerca, ao menos no universo que conhecemos:
Na transformação e crescimento de todas as
coisas, cada broto e cada característica apresentam sua forma própria.
Nesta, obervamos sua maturação e decadência graduais, o fluxo constante de
transformação e mudança (página 91).
Para os taoístas, qualquer par de opostos
(que para nós representam contrários) constitui aspectos de uma mesma
unidade. Essa percepção é conseguida quando estamos num estado mental que
naturalmente percebe as coisas para além de seus apres de opostos:
Aquilo que ora nos apresenta a luz e ora nos
mostra a escuridão nada mais é que o Tao.
Neste sentido, a filosofia taoísta não
considera a vida e a morte senão como aspectos complementares do ser, que,
em si, parece ser eterno, do mesmo modo que um dia é composto pelos alternos
dia e noite...
O "isto" é também o "aquilo". O "aquilo" é
também "isto". Que o "aquilo" e o "isto" deixem de ser opostos, eis aí a
essência mesma do Tao. Somente esta essência, como se fosse um eixo,
constitui o centro do círculo que responde às mudanças incessantes (página
91).
Mas, afinal, o que é o Tao? Em termos
ocidentais, poderia-se dizer que o Tao representa Deus, mas esta é uma
idéia, ou melhor, uma palavra que leva geralmente a um grande número de
idéias e projeções antropomórficas ou de um cunho religioso onde o princípio
"Deus" está ligada a uma imagem de uma divinidade pessoal. Na verdade, a
própria palavra "DEUS" é uma rótulo ou uma metáfora para algo que está além
das palavras. Tao também significa sentido ou caminho, e é isso tudo, ao
lado da idéia de que o princípio divino está em tudo, exatamente o que
singnifica o Tao, como nos fala Lao Tse no primeiro poema do Tao Te King:
O Tao que pode ser expresso não é o Tao
Absoluto O nome que pode ser revelado não é o Nome Absoluto Sem Nome é o
princípio do Céu e da Terra; Com Nome é a mãe de todas as coisas Assim Quem
permanece sem desejos contempla os limites das aparências Ambos são
idênticos em sua Orígem E distintos tornam-se seus nomes ao se tornarem
manifestados Este mistério chama-se Infinita Profundidade Profundidade ainda
não desvelada pelo homem E que é a Porta de todas as Maravilhas do Universo
(Tao Te King, Editora Hemus, 1987, página 19)
A Descoberto de Lao Tse pelo Ocidente
Como nos fala o físico Fritjof Capra (Capra,
1993, página 92), "é espantoso que, ao mesmo tempo em que Lao Tsé e seus
discípulos desenvolviam a sua concepção de mundo, as características
essenciais da concepção taoísta foram também ensinadas na Grécia por um
homem cujos ensinamentos chegaram até nós de forma fragmentária e que foi -
e ainda é - frequentemente mal compreendido. Esse 'taoísta' grego foi
Heráclito de Éfeso. Heráclito partilhava com Lao Tsé não apenas a ênfase na
mudança contínua - que expressou em sua famosa afirmação 'Tudo flui' - mas,
igualmente, a noção de que todas as mudanças são cíclicas (...) imagem muito
semelhante à idéia chinesa do Tao que se manifesta na interação dinâmica
cíclica do yin e do yang". Esta mesma ideia, pasmem, encontramos em um campo
do saber que nada tem de espiritual, ao menos aos olhos de hoje. A Física
Moderna igualmente percebeu que as coisas apresentam aspectos duais
complementares, como é o caso da Luz que, em certos experimentos, parece ser
constituída de partículas definidas (os fótons) e, em outros, de ondas
eletromagnéticas. Uma partícula é uma entidade bem precisa, um caroço de
matéria, enquanto que uma onda é algo bem diferente, é um padrão de energia
que não possui espaço físico definido e que se expande pelo espaço... O que
levou o físico Niels Bohr a elaborar seu famoso Princípio da
Complementaridade e a adotar o símbolo taoísta do Yin e do Yang como parte
integrante de seu Escudo de Armas ao receber o título de cavalheiro pela
realeza dinamarquesa, pondo como divisa a frase latina Contraria sunt
Complementa (os opostos são complementares).
Para os taoístas - assim como para Heráclito
-, o conceito de mudança é um dado lógico perceptível na própria dinâmica da
natureza, portanto ela não ocorre por um tipo de ação externa, mas por um
processo que é inerente em tudo o que existe, coisas e situações. Como nos
fala Capra, "os movimentos do Tao ocorrem espontânea e naturalmente, não
exercendo pressão alguma sobre ela.
A espontaneidade é o princípio ativo do Tao.
Dessa forma, uma vez que a conduta humana deve ser modelada de acordo com a
operação do Tao, a espontaneidade deveria também ser a característica de
toda ação humana" - como belo e espontâneos são as ações de uma criança.
"Agir em harmonia com a natureza equivale, para os taoístas, a agir
espontaneamente em consonância com a verdadeira natureza de cada indivíduo.
Significa confiar na inteligência intuitiva do indivíduo, inata na mente
humana" - como muito bem demonstrado pelo psicanalista Carl Gustav Jung -
"da mesma forma que as leis da mudança são inatas a todas as coisas que nos
cercam" (Capra, op. cit., p. 92-93). Esta é uma das ideáis mais ecológicas
de toda a herança espiritualista mundial.
O caráter dinâmico e complementar das coisas
é representado graficamente pelo símbolo T'aichi T'u, onde vemos os
princípio Yin - escuro, intuitivo, receptivo, contemplativo, feminino - e
Yang - claro, ativo, racional, masculino - como princípio complementares
dinâmicos e em eterno abraço e movimento, cada um com a semente de seu
oposto, o yang retornando ciclicamente ao seu início, o yin atingindo seu
apogeu e cedendo seu lugar ao yang, sendo a vida a harmonia combinada do yin
e do yang. Esta é a base que permitiu o desenvolvimento da esplêndida
medicina tradicional chinesa, com técnicas como a acumputra, por exemplo,
hoje amplamamente reconhecida no ocidente (onde foi, ao menos no Brasil,
tomada em mãos da Medicina).
Bibliografia
Brunner-Traut, Emma (Org.) - Os Fundadores
das Grandes Religiões. Petrópolis, Editora Vozes, 1999.
Capra, Fritjof - O Tao da Física. São Paulo, Editora Cultrix, 1993
Lao Tse - O Tao Te King. São Paulo, Editora Hemus, 1987.