Desde sempre, pessoas de todas as culturas, em
todos os povos, em todas as épocas, têm relatado experiências de expansão da
consciência a níves extraordinários, onde sente-se mais plenos de vida, numa
sensação de união íntima de suas almas com Deus, ou com a "Consciência
Cósmica". Todos os relatos de experiências místicas têm importantes
pontos em comum. Não devemos cair no erro de pensar que estas experiências
sejam ocorrências exclusivas de certas períodos históricos, onde predomina
um maior grau de histerismo religioso, ou sejam características de pessoas
com graves distúrbios mentais. Estes estados alterados de consciência
são, hoje em dia, objeto de estudo da
Psicologia Transpessoal, que é mais avançada corrente dentro da
Psicologia, estudiosa de todo o espectro possível de manifestação da
consciência humana. Vejamos o relato de um psiquiatra contemporâneo
relacionado ao declínio de uma psicopatologia e com a restauração da saúde
mental. O relato é do Professor Stanislav Grof:
No estado de consciência "normal" ou usual, o indivíduo se experiencia
como existindo dentro dos limites de seu corpo físico (a imagem corporal), e
sua percepção do meio ambiente é restringida pela percepção, fisicamente
determinada, de seus órgãos de recepção externa; tanto a percepção interna
quanto a percepção das coisas externas do meio ambiente estão confinadas
dentro dos limites do espaço e tempo euclidiano-newtoniano. Em experiências
psicodélicas, transpessoais e de psicoterapia profunda, ou mesmo através da
meditação, uma ou várias dessas limitações parecem ser transcendidas. Em
alguns casos, a pessoa experiencia um afrouxamento de seus limites usuais de
ego e sua consciência e autopercepção parecem expandir-se para incluir e
abranger tudo o que diz respeito a outros indivíduos e elementos do mundo
externo. Ele consegue obter informações que, pelos meios sensoriais
convencionais, seriam impossíveis. Em outros casos, o sujeito continua
experienciando sua própria identidade, mas num tempo diferente, num lugar
diferente, ou num diferente contexto, tal como ocorre na chama Terapia de
Vida Passada. Ainda em outros casos, o sujeito experiencia um grande
identificação com uma onipresente consciência universal, conseguindo
abranger elementos que não têm nenhuma continuidade com sua identidade de
ego usual e que não podem ser considerados como simples derivativos de suas
experiências no mundo tridimensional (Grof, S. Journal of
Transpersonal Psychology, vol 4., 45-80, 1972).
Em outra parte de meu trabalho sobre
Psicologia Transpessoal e na Home Page sobre
Plotino, me aprofundei mais sobre as caracterísitcas que cercam o
fenômeno do extase místico. Vamos agora falar de gandes mulheres e
homens da história ocidental que deixaram um profundo legado
filosófico-religioso, conseqüência direta de suas experiências, e repletas
de passagens místicas.
Hildegard von Bingen
Durante as trevas
intelectuais da Idade Média, a Igreja Católica Romana era uma insituição
patriarcal sedenta de poder e rigidamente machista. Mas, mesmo assim, alguns
luminares femininos conseguiram se destacar, especialmente nos países
germânicos. Entre estas mulheres, uma nos interessa especialmente:
Hildegard von Bingen. Hildegard von Bingen viveu de 1098 a 1179,
na Renânia. Ela foi uma extraordinária pensadora, uma grande filósofa e
teóloga. Ela era uma freira que - coisa raríssima na época - fazia sermões
públicos, que, além de atrair pela riqueza de conteúdo o povo de sua época,
atraia multidões pelo carisma e pela grande beleza física que possuia, como
podemos ver pelas iluminuras que a representam e pelos relatos sobre ela.
Dentre outras qualidades, ela era compositora (suas músicas foram
recentemente gravadas), escritora, médica, botânica. Era muito dada ao
estudo. De certa forma, durante o reinado das trevas, ela possivelmente
tenha sido a primeira cientista após a destruição definitiva da biblioteca
de Alexandria. Na totalidade da história ocidental, o século 12, na
Alemanha, nos chama a atenção pelo profundo mergulho espiritual dos
pensadores da época, na maior parte religiosos, que possibilitaram uma
ambiente extremamente místico (no sentido transpessoal do termo), rico de
insights,
e que se refletiu na arte e cultura do tempo, e que ainda hoje exercem um
fascínio mágico e racionalmente incompreensível ao homem de hoje, mas que
emociona profundamente e enleva a alma: o estilo Gótico.
A Renânia possuia todo um clima espiritual
mais sofisticado e evoluído que o resto da Europa. Lá nasceu Hildegard. Ela
era a décima criança de uma família nobre que morava na cidade de Rhineland,
próxima a Mainz, e onde ainda se podia respirar um pouco do ar celta e
sentir um pouco do espírito da Antiga Roma Imperial. Com oito anos, sua
família resolveu da-la aos cuidados de uma freira para que, posteriomente,
segui-se a carreira religiosa.
Pelos registros que temos, Hildegard foi uma
criança excepcional, apesar de ter uma constituuição física frágil e de ter
suportado graves doenças. Desde cedo ela passou a ter visões místicas de
cunho
Transpessoal que lhe possibilitavam,
entre outras coisas, demonstrar um alto grau de clarividência e de
premonições; de início assustada com as possíveis conseqüências de suas
visões, ela não costumava relatar suas experiências transpessoais. Quando a
irmã que a criou no convento, e que era Abadessa, faleceu em 1136, Hildegard
foi eleita a nova Abadessa. Anos depois, em meio a um longo tratamento de
saúde, ela escrveu: "Quando tinha 42 anos e sete meses de idade, uma ardente
luz de um intenso brilho veio do céu para se por por completo em minha
mente, como uma chama que não queima mas que ilumina. Ela me preencehu
totalmente, coração e alma, como um sol que esquenta algo com seus raios. E
mais uma vez eu poderia ter o gosto de entender realmente o diziam e o que
significavam os Sagrados Livros - Os Salmos, os Evangelistas e os demais
livros do Antigo e Novo Testamento."
Hildegard escrevia tudo o que lhe acontecia,
e suas visões se transformaram num livro chamado Scivias
(Conhecer o Caminho). Ela relatou sobre suas visões com grandes teólogos da
época, como Bernard de Claivaux. Foi ele quem enviou uma parte dos
manuscritos de Hildegard para o Papa Eugênio III, em Trieste. Profundamente
impressionado, ele endossou os trabalhos de Hildegard bem como suas visões.
Está claro, hoje, que Hildegard possuia uma
facilidade ímpar para adentrar nos chamados "Estados Alterados de
Consciência". Muitas vezes ele diria que suas visões e as sensações a elas
vinculadas eram difícies de serem postas em palavras. Eram experiências que
transcendiam o nosso modo convencional de perceber as coisas. Mas ela tinha
de descrever suas experiências de alguma forma, sentia uma grande
necessidade de comunicá-las. Por isso não é de se estranhar que toda a
riqueza de suas experiências místicas tenham sido relatadas sob uma forte
capa cultural típica dos escritos da época. Durante mais de 25 anos, ela
escreveu um número extraordinário de documentos e trabalhos sobre a relação
humana com o plano divino da criação. Também produziu fascinates estudos
sobre botânica e medicina. Compôes 77 canções litúrgicas para uso do
convento, e algo como um oratório dramático intitulado Ordo Virtutem. Já com
uma idade avançadíssima para a época, aos 72 anos ela voltou a Rhineland
para pregar aos clérigos e aos leigos da necessidade de reformas urgentes na
Igreja, que estava visivelmente corrompida por assuntos nada espirituais.
Por toda a vida, ela escreveu centenas de cartas para as pessoas das mais
diversas classes e níveis sociais.
Sua incansável energia e grande vitalidade
argumentativa tornaram-se suas principais marcas de personalidade,
juntamente com suas experiências místicas: frequentemente ela se erguia de
seu leito, muitas vezes em meio a inúmeras dores, após ter tido uma nova
visão que imediatamente lhe estimulava a ir a uma nova cruzada de
conscientização pública sobre os rumos que a religiosidade estava tomando, e
que dibergia da mensagem de Cristo. Ela foi implacável ao denunciar a
corrupção clerical de sua época.
Por conta de sua coragem, Hildegard foi
muito atacada por toda a sua vida. Mas o pior ainda viria no último ano de
sua vida. Ela havia caridosamente enterrado um jovem revolucionário que
havia sido excomungado, quebrando assim com uma das mais rígidas leis
eclesiásticas da Igreja. Os bispos exigiram que ela exumasse o corpo,
considerado indigno de repousar em terra santa. Ela recusou-se, dizendo que
o jevem morrera em graça e em comunhão com Deus. Seu convento foi
interditado e ela e suas irmãs foram proibidas de participarem da missa.
Apenas alguns meses antes de sua morte, seus
direitos foram restaurados. Ela pode, enfim, descansar um pouco. Em 17 de
setembro de 1179, Hildegard, ao 81 anos, sofreu um colapso; pouco antes de
morrer, duas listas de luz surgiram no céu e adentraram em seu quarto.
Hildegar foi, a partir de então, cultuada como uma mensageira de Deus entre
os homens.
Entre o povo mais simples da época, talvez
devido aos resquícios da tradição pagã, como a dos
druidas, acreditava-se que Deus não
seria apenas homem, não teria apenas caraceterísticas masculinas, Deus seria
Pater-Mater.
O Ser Supremo teria também um lado feminino, ou uma "natureza feminina" (a
Deusa, adorada pelos druidas). Afinal, a mulher teria sido também criada à
Sua imagem e semelhança, ainda que os padres torcessem o nariz para tal
pensamento e culpassem a mulher pela vinda do pecado ao mundo. Em grego, a
palavra para o lado feminino de Deus é
Sophia, e significa sabedoria.
A crença sobre a natureza materna de Deus
também estava presente entre os cristãos primitivos, antes de Roma obter a
hegemonia sobre os rumos da Igreja. Mas ela manteve-se na Igreja do Oriente,
a chamada Igreja Ortodoxa, e entre os judeus durante a Idade Média, mas caiu
em completo esquecimento na Europa ocidental (graças ao machismo romano). Só
com Hildegard von Bingen é que é que ela teve um rápido lampejo de retorno.
Em vários de seus êxtases místicos, ela conta que viu Sophia a
andar ricamente vestida, procurando um meio de se dar à conhecer ao mundo.
Quando Hildegard morreu, conta-se que seu espírito, rejuvenescido, foi visto
várias vezes andando e cantado pela capela, com uma expressão de doce júbilo
no rosto. Ela cantava a sua mais conhecida canção: O Virga Ac Diadema.
Mestre Eckhart
Embora a Igreja patriarcal de
Roma tendesse a impor uma atmosfera intelectual rígidamente controlada
conforme seus objetivos e interesses temporais, a presença da filosofia
espiritualista de
Platão e dos
Neoplatônicos nunca foi totalmente
suprimida, durante a Idade Média. Mesmo quando o interesse por Aristóteles
tornou-se a primazia, no século XIII, o neoplatonismo ainda era estudado,
sobretudo na Alemanha, país que sempre se destacou por sua luta pela
liberdade intelectual, e, mais tarde, com Lutero, pela espiritual. Isso
explica o fato de que os estudiosos dominicanos da cidade de Colônia e de
outros centros renananos, onde também vivera Hildegard von Bingen, haverem
construído uma ambiente particularmente favorável a um segundo renascimento
do neoplatonismo, caraceterizado por uma intensa acentuação mística. Até
mesmo entre os padres da escolástica medieval, que mergulhava cada vez mais
o mundo num universo cheio de dogmas superficiais, havia um certa saudade de
uma pureza mística, pois o que é essencial é o retorno da alma a Deus, a sua
união com Deus.
Foi neste ambiente propício, talvez não por
acaso, que surgiu o mestre dominicano Eckhart, um dos maiores lumiares da
filosofia medieval e do misticimo do ocidente, e sobre quem falaremos agora.
Mestre Eckhart nasceu em Hochheim, na
Turíngia, em 1260. Ingressando no convento dos dominicanos de Erfurt,
estudou em Estrasburgo e em Colônia. Tornou-se mestre em Teologia e ensinou
em Paris entre 1302 e 1304. Exerceu vários cargos eclesiásticos na Alemanha.
Estabeleceu-se definitivamente em Colônia em 1320. Escreveu várias obras,
entre elas Pregações e Tratados.
Em sua obra está muito presente a
unidade entre Deus e o homem, entre o
que consideramos sobrenatural e o que achamos ser natural. É um pensamento
holístico, pois. Como afirmava
Plotino, Eckhart também acreditava que
sem um algo,
a que chamamos Deus, o homem e o mundo não teriam nenhum sentido e nada
seriam. Alguma "coisa" tem de dar sentido a tudo o que existe. Tudo tem de
ter uma razão de ser. Na verdade, não existe um mal absoluto, existe tão só
o erro na busca da evolução da alma. Tudo está imerso numa Unidade. A
Unidade é dinâmica e é diversidade, assim como as sete cores são o
arco-íris. Somos frutos, mas os frutos nascem de uma árvore, e o fruto
carrega a árvore. Assim, somos filhos de Deus, mas também somos Deus. E
assim tudo rearfirma a Unidade. E tal é o poder que temos, que o mundo
sempre será para nós aquilo que dele pensarmos. Mas o Deus "que está em
todas as criaturas é o mesmo que está acima delas, pois aquilo que é Uno
deve ser mais que a mera soma das coisas". Isto é um belíssmo exemplo do que
hoje entendemos por pensamento holístico.
Bom, se tudo existe por que uma causa os fez
existir, qualquer que seja o nome que dermos a esta causa, ela estará acima
do fruto que dela veio. Bom, se considerarmos que tudo o que existe existe
por obra do Ser Divino, isso significa que temos uma razão de existir, pois
o Supremo não faria nada de inútil. Sendo assim, Ele terá necessaramente de
amar a seus frutos. Por isto existe uma Unidade entre Deus e o homem. E é
por essa razão que o homem sente-se atraído e tenta voltar a Deus, pois é na
União que há sentido, sem que haja anulação. Para isso, para poder ir de
encontro a Deus, o homem deve ser livre: "Livre espírito é aquele que não se
preocupa com nada e a nada se liga" (isso lembra a mensagem budista do
desapego), "já que se aprofunda na amantíssima vontade de Deus". E quem tem
Deus, ou seja, quem o encontra em si
mesmo "o tem em todos os lugares, nas
ruas e entre as pessoas, da mesma forma que na Igreja, na solidão ou na
cela". Se ele O encontrou realmente, encontou a pérola de grande valor, e
fará de tudo para mante-la consigo. Se ele a possui verdadeiramente, ninguém
que não a possua também poderá perturba-lo. E se o tem, exatamente por
também a ter, não irá perturba-lo. Assim, para Eckhart, por que não nos
abandonarmos em Deus? Jesus não disse que "as aves do céu não amontoam em
celeiros, nem cultivam, mas mesmo assim o Pai do Céu não as alimenta? Não
sóis vóis mais que as aves?"
Devemos reconhecer Deus em nós, mas este
caminho não é fácil. O homem deve se "exercitar nas obras, que são seus
frutos", mas, ao mesmo tempo, "deve aprender a ser livre mesmo em meio às
nossas obras".
Eckhart morreu em 1327. Em 27 março de 1329,
mais uma vez a infalibilidade
papal se fez presente onde não compreende o transcendente. Neste dia foi
dado ao público a bula In agro dominico,
através do qual o Papa João XXII condenou vinte e oito proposições do Mestre
Eckhart. Das vinte e oito, dezessete foram consideradas heréticas e onze
consideradas escabrosas e temerárias. Entre estas, estava a de que nos
transformamos em Deus. Mas esta condenação papal justifica-se na medida que
as idéias de Eckhart tinham uma dimensão revolucionária. Elas foram
acolhidas pelas camadas populares e burguesas, que interpretavam o apelo
eckhartiano à interioridade da fé e à união divina como uma rebelião
implícita à exterioridade "farisáica" de uma hierarquia e de um clero
moralmente decadente (parece que a coisa nunca mudou muito mesmo). Sua
herança influenciou, entre outros, significativamente, a Martinho Lutero.
Outros grandes e
famosos místicos da Idade Média e do Renascimento foram: Francisco de Assis,
Juan de La Cruz, Tereza D'Ávila, e, talvez a mais sofrida, Joana D'Arc. As
teorias reducionistas e mecanicistas da Psiquiatria e da Psicanálise não
explicam o trabalho, o carisma e a ernorme influência que estas figuras
exerceram na história da humanidade. Nelas, algo de muito especial ocorreu,
e não será por querermos que o universo seja da forma como achamos que ele
deva ser que o brilho de suas vidas possam ser manchados com nossas tolas
teorias racionais.
Bibliografia Sugerida
Gaarder, Jostein. O
Mundo de Sofia. Companhia das Letras, São
Paulo, 1995
Reale, G. & Antiseri,
D. História da Filosofia, Vol. I. Ed.
Paulus, 1990