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Psicologia Platônica

Por: Eraldo Paulli

 A psicologia teve um considerável avanço com Platão, bem mais do que a lógica do conhecimento; depois Aristóteles imprimirá a sistematização, tanto à lógica, como à psicologia.
 
Tudo já começa em Apologia, em que Platão destaca a espiritualidade e a imortalidade da alma, que já são teses recebidas de Sócrates.
 
Aliás são do patrimônio universal da crença popular, cabendo aos filósofos aperfeiçoá-los, ora pela eliminação dos mesmo como inválidos, ora aproveitando-os sem os antropomorfismos e outros defeitos. A esta altura da história da filosofia a melhora dos conceitos já ia adiantada.
 
A psicologia platônica continuou a desenvolver-se em Fédon, que é um dos primeiros Diálogos do período acadêmico, este iniciado em 387 a.C., já sob as influências da primeira viagem à Sicília, e em que apresenta a alma como princípio vital, causador do movimento do corpo, bem como portadora da consciência.
 
Manifestam-se aqui as primeiras influências pitagóricas, porquanto o corpo é apresentado como prisão da alma. Neste mesmo clima desenvolveu Platão a teoria da visão das idéias separadas em um período anterior de vida, em que se destacou a espiritualidade.
 
Vinte anos após Fédon, já agora pelo ano 366 a.C., Platão apresenta em Fedro a vida celestial da alma, movendo-se (miticamente) num carro que percorre o espaço, onde contempla as idéias reais.
 
Finalmente, em Leis e Timeu completaram-se as noções de Platão sobre a alma. Com mais detalhes, a analisou como principio do movimento, e especulou sobre a metempsicose.

Em resumo didático, a alma, segundo Platão:
 
- é princípio do movimento (vd. 195);
 
- exerce operações psíquicas, como conhecer e querer (vd. 200);
 
- é de natureza espiritual , simples, imortal (vd. 207);
 
- é substância completa, apenas residindo no corpo, diversificando-se no curso das transmigrações (vd. 217).
 
Do ponto de vista sistemático e mesmo didático, importa primeiramente considerar as manifestações da alma, e depois a ela em si mesma. Todavia, nos Diálogos de Platão os temas surgem quase sempre globalmente.
 
Para uma compreensão adequada das questões, devemos didaticamente colocar no início a alma como princípio do movimento.
 
I - A alma como princípio do movimento.

196. Segundo Platão, a alma inclui entre as suas mais importantes funções, a de ser principio do movimento. Ela move, sem precisar de ser movida, por outro, como contrariamente acontece com os corpos.
 
Na função de princípio do movimento a alma dá vida às plantas, aos animais e aos seres humanos. A vida, portanto, se define como movimento próprio. Este movimento a partir da alma já foi defendido por Platão a propósito do Demiurgo (causa eterna) e da Alma do mundo (causa criada para mover todo o cosmos).
 
Mais ainda - a alma também exerce funções psíquicas, como do conhecimento e do querer (vd 200). Não seria esta a característica mais típica do psiquismo? Entretanto, isto não o destacou Platão.
 
Até onde tem sentido dar como essencial à alma ser geradora do movimento? Não seria antes de tudo seu caráter mais peculiar o psiquismo, entendido este como ação imanente, qual seja de conhecer, querer, sentir?
 
Parece que tomar o movimento como característico da vida psíquica é um dos maiores equívocos da filosofia. Todos os seres poderão ter vida imanente, ou psíquica, sem que isto se manifeste pelo movimento.
 
Parece possível entender a vida como movimento e que nada teria como o psiquismo. Platão combina ambas as coisas na mesma alma e não discute diretamente a separabilidade entre vida e espírito.
 
Qualquer seja a verdade efetiva, o pensamento de Platão conceitua a alma como princípio do movimento. Ao indagar sobre a causa do movimento do mundo, pensou ao motor deste como sendo uma alma do mundo. Assim concebeu o primeiro motor do mundo e o ser humano movente (Fedro 245 c-e; Leis 891ss).
 
Assim também concebeu os deuses ou almas que movem os astros e o Deus primeiro ordenador (o Demiurgo).

197. No grande diálogo Leis, em que os textos sobre a alma e o movimento são amplos e com variados enfoques, encontra-se um em que Platão assevera haver alma onde algo se move por si.
"Ateniense: Se, como se atrevem a supor a maior parte daqueles aos quais nos dirigimos, todas as coisas estivessem em total repouso, por onde deveríamos necessariamente começar?
Clínias: Pela que se move por si mesmo, porque é evidente que nada pode fazê-la mudar de estado antes deste momento, visto que antes de sua ação não ocorre nenhuma mudança em tudo o mais.
A.: Por conseguinte, diremos que o princípio de todos os movimentos, - sejam passados, no que no presente está em repouso, sejam atuais, no que se move, - o princípio que tem a virtude de mover-se, é necessariamente a mais antiga e a mais importante espécie de mudanças; e coloquemos em segunda linha a espécie de mudança que, tendo sua causa fora de si, imprime o movimento a outras coisas.
C.: Nada mais certo.
A.: Posto que chegamos a este ponto, respondamos ao seguinte.
C.: A que?
A.: No caso em que a primeira espécie de movimento se encontre em alguma substância, seja a que for, terrestre, aquática, ígnea, simples ou composta, como diremos que é afetada esta substância?
C.: Pergunta-se se diremos que é viva esta substância pelo fato mesmo de mover-se por si mesma?
A.: Sim, se é viva.
C.: Sem dúvida.
A.: Porém quando vemos substância animadas, não é preciso reconhecer que o princípio da vida nelas é a alma mesma?
C.: Não pode ser outra coisa" (Leis 895 a-c).
 
Não dispunha certamente Platão recursos experimentais, como são os de hoje, para considerar que o movimento do ser vivo poderá ser um mero mover-se de forças em constante busca de reequilíbrio.
 
E assim se teria advertido melhor, que o movimento da vida não se reduz necessariamente à alma, e esta seria em primeiro plano apenas um psiquismo.
Em função ao destaque da alma como princípio do movimento, Platão reclamou contra os físicos pré-socráticos, porque estes lhe deram um lugar secundário na explicação geral do movimento, tendo eles ao invés buscado esta explicação num princípio material. E disse em Leis, no qual dialoga um cidadão anônimo de Atenas:
"Ateniense: Os sistemas, que deram origem à impiedade, transformaram a ordem das coisas, retirando a condição de primeiro princípio à causa primeira da geração e da corrupção de todos os seres, colocando antes dela o que existe senão depois dela. A partir daqui procedem os erros sobre a verdadeira natureza dos deuses.
Clínias: Não te compreendo ainda.
A.: Parece-me, querido amigo, que quase todos estes filósofos ignoraram o que é a alma, e quais são suas propriedades. Não viram, que em tudo, principalmente em sua origem, a alma é um dos primeiros seres, que tem existido, que existia já antes dos corpos, e que preside mais que outras coisas às diversas mudanças e combinações destes. E, se assim é, não se deveria concluir necessariamente, que, tudo o que tem afinidade com a alma, é mais antigo que o que pertence ao corpo, já que a alma mesma é mais antiga que o corpo?
C.: Certamente.
A.: Por conseguinte, a opinião, a previsão, a inteligência, a arte e a lei existiram antes que a dureza, a brancura, o peso e a velocidade; e as grandes, as primeiras obras, como igualmente as primeiras operações, pertencem à arte. Todas as produções da natureza e a natureza mesma, segundo o falso sentido que eles dão a este termo, são posteriores e estão subordinadas à arte e à inteligência.
C.: Explica-te.
A.: Digo, que esses filósofos não têm razão em entender pela palavra natureza a geração dos primeiros seres, e por primeiros seres os corpos; porque , si chegamos a demonstrar, que não têm sido o fogo, nem o ar, nem o corpo os primeiros engendrados, porém a alma, não poderíamos sustentar, com toda a ordem de razões, que a alma ocupa o primeiro grau entre os seres, e que esta é a ordem estabelecida pela natureza. Porém a alma é anterior ao corpo, e se isto não se provasse, não poderíamos passar em frente" (Leis 891 e - 892 c).
 
II - As operações psíquicas do conhecimento, vontade e paixões. 6316y200.
Importa levar em conta a distinção entre objeto conhecido, o qual é examinado pela gnosiologia (vd 94) e as condições psíquicas correspondentes, de que se ocupa a psicologia.
 
O pensamento e a sensação, além de específicos pelo seu objeto, correspondem a duas funções psicológicas distintas. Platão chega mesmo a falar em parte superior da alma e parte inferior.
 
Há também impulsos na alma. Na parte superior da alma ocorre, ao lado da inteligência ( ), a faculdade volitiva ( ), geradora da volição ( ).
 
A vontade é livre; mas não se distinguindo inteiramente da razão, ela quer necessariamente o bem. Trata-se aqui do paradoxo socrático. Aristóteles fará ver melhor, que a vontade se prende essencialmente ao bem como tal, e não ao bem particular.
 
A vontade e sua liberdade, os instintos e sua inclinações determinísticas, bem como os estados de alma ou sentimentos, como a felicidade, são tratados pelas investigações de psicologia de Platão. Em si mesmas precedem à ética, mas vão interessar sobretudo a esta. Visando sobretudo estas considerações posteriores, a anterior especulação psicológica é feita por Platão quase como que de transito.
 
Não há, pois, em Platão uma psicologia sistemática e de amplo desenvolvimento, como acontecerá depois com os trabalhos de Aristóteles.
 
As operações da alma se situam em três níveis, de acordo com as partes da alma: a razão ( ), a força volitiva ou entusiasmo ( µ ), a apetência sensorial ou impulso ( µ ).
 
A cada operação corresponde a respectiva virtude, prudência, fortaleza, temperança, de que se ocupa principalmente a ética (vd 232).
O prazer e a dor são estados de alma da parte inferior da alma; a felicidade, da parte superior.
 
É a felicidade é um objetivo importante para o qual sempre aponta a filosofia de Platão. Toda a marcha da alma pelas diferentes fases da metempsicose tem por objetivo final atingir ao estado puro, quando a felicidade será plena em um mundo superior, no céu das estrelas.
"Resta explicar ainda algo de considerável importância nas impressões comuns ao corpo inteiro, ou seja porque certas impressões originadas nas diversas partes do corpo se apresentam acompanhadas de prazer ou de dor. Comecemos por expor, por que razões estão acompanhadas ou não de sensação, recordando o que há pouco havíamos dito referindo-nos às coisas fáceis de mover; pois este é o método que nos levará à averiguação proposta.
Quando um órgão naturalmente fácil de mover recebe uma impressão, ainda que ligeira, esta impressão se transmite às partes imediatas e por estas às seguintes, transmitindo finalmente as modificações à alma inteligente, advertindo-a do poder do agente. Mas se o órgão é de natureza oposta, e em virtude desta estabilidade, não deixa circular nenhuma transmissão, sofre isoladamente a impressão e não passa à outra parte vizinha o movimento. Não se comunicando as partes umas com as outras e por isso permanecendo imóvel no animal a primeira impressão recebida, o paciente continua insensível. este último fenômeno se verifica nos ossos, nos cabelos, e em todas as partes do nosso corpo constituídas de terra; o primeiro fenômeno se anota na vista e no ouvido, sentidos em que o fogo e o ar desempenham um grande papel.
Eis agora como se explica o prazer e a dor. A impressão contrária à natureza e violente, quando produzida repentinamente e com força, é dolorosa. A impressão que faz as coisas voltar ao seu estado natural, quando acontece repentinamente e com força, é agradável. o que se produz brandamente, e de pouco em pouco, é insensível. O oposto ocorre com as impressões contrárias. Todas as vezes, porém, que uma impressão se produz com facilidade é perfeitamente sensível sem participar em nada do prazer, nem da dor" (Timeu 64 a-d).
O lado fisiológico da sensação é examinado por Platão, que já consegue imaginar uma explicação para a corrente de comunicação que vai dos terminais nervosos às regiões centrais. Hoje sabemos que o contato dos objetos com os terminais nervosos gera uma corrente elétrica, a qual cria reforços no decurso mediante pequenas transformações químicas.
 
O fato mesmo de haver Platão tentado uma explicação física, mostra o quanto a ciência de então já se encontrava liberta de explicações míticas ou mesmo da simples ignorância. Platão, cuja teoria, de índole pitagórica, interpretava a estrutura interna dos corpos como tendo formas geométricas de complexidade variada, umas mais simples, outras mais complexas, condicionava o movimento à resistência maior e menor destas formas; assim imaginava explicar as diferenças entre as sensações, quer na intensidade, quer na espécie.
 
Além disto, Platão distinguiu, ao que parece, entre impressão e sensação. O que Platão diretamente procurou explicar foi o prazer e a dor, mas de passagem introduziu a noção da corrente nervosa.
 
III - Natureza geral da alma, espiritual, simples, imortal. 6316y207.
A alma é espiritual. Como espiritual ( µ ) diferem as características da alma, das que são peculiares ao corpo. Este, o corpo, é espacial, e em consequência é também visível, além de perceptível de algum modo aos demais sentidos, quando a alma, ou o espírito, é invisível.
 
Espiritual significa também não ser material. Esta afirmação praticamente nada esclarece, porque na prática diz apenas haver uma diferença, sem dizer em que consiste esta diferença (vd 178).
 
Entre os platônicos futuros a alma poderia todavia compor-se com a matéria, mas já não seria a matéria dos corpos e seriam uma de natureza especial, de tal sorte que todos os seres criados seriam compostos de matéria e forma.
 
Tal doutrina encontra-se também ente platônicos cristãos, como Agostinho, e se manterá entre os agostinianos da Idade Média.
 
A espiritualidade se liga à simplicidade e à imortalidade, - o qual ainda importa examinar em Platão.
A alma é simples fundamentalmente, ainda que diferentes gêneros de faculdade tenham permitido a Platão uma linguagem em virtude da qual, ora fala em almas, ora em partes da alma.
 
Considerando que há faculdades sensíveis, que permanecem apenas no curso da vida atual, estas foram denominadas alma mortal.
 
Também denominou partes às operações racionais, impulsivas e instintivas.
 
São as seguintes as três partes em que Platão dividiu a alma:
 
- alma espiritual (8 @ ( 4 F J 4 6 ` < ), de natureza imortal, que se manifesta no pensamento puro;
 
- alma irascível (2 L : @ 4 , * X H ), impulsos nobres como a cólera, cobiça, coragem, esperança;
 
- alma concupiscível (¦ B 4 2 L : 0 J 4 6 ` < ), que corresponde ao conhecimento sensível, aos instintos de nutrição, sexo, e outros.
 
Quer Platão, que a primeira alma se situe na cabeça, a segunda no peito, a terceira no ventre (Timeu).
Discute-se, o alcance da divisão de Platão. A primeira vista não se apresenta clara esta divisão, se pretende estabelecer efetivamente três partes realmente distintas, ou apenas três gêneros de faculdades ou funções de um mesmo princípio.
 
Em Fedro 246 e República, - Diálogos do período médio ou de transição (c. 380-367, segunda viagem à Siracusa) - aparece a doutrina das partes da alma como formas ( ) de comportamento, o que permite uma interpretação benigna e favorável à unidade da alma.
 
Principalmente em Fedro, em virtude da exposição mítica, a unidade da alma não parece comprometida.
 
Mas, no Timeu, diálogo da velhice, se fala expressamente de partes da alma (µ ), de que ela estaria composta.
 
De acordo com a interpretação que se der à expressões apresentadas, mudam os termos segundo os quais Platão teria concebido a essência da alma e sua imortalidade.
 
Os distintos textos deram lugar a três espécies de interpretações.
 
Querem uns que ocorresse uma verdadeira alteração evolutiva na psicologia de Platão, como também sucedera em sua concepção gnosiológica das idéias.
 
Entram em questão os Diálogos Banquete, Fédon, República, Fedrom, Timeu, Leis. Para se estabelecer a procedência da pretendida evolução se faz necessário fixar as datas da composição dos Diálogos, a fim de que fique certo que a concepção homogênea da alma, como vem em Fédon, efetivamente seja anterior à expressão "partes da alma".
 
Além disto, requer-se que a referida expressão "partes da alma" importe deveras numa significação essencialmente diferente.
 
Conforme uma segunda opinião que é a de Windelband "se aceita que há discrepâncias no principal, mas não se atribuem a uma evolução no tempo, senão a fatores distintos do pensamento platônico, não equilibrados entre si, a circunstância de que nele influem ao mesmo tempo o interesse metafísico ou puramente científico e o teológico" (H. da fil. n. 36 pag. 232).
 
Terceiros como P. Natorp, R. Hirzel, C. Ritter, têm as discrepâncias como aparentes ou insignificantes, conciliáveis com a doutrina da homogeneidade da alma.
 
E então as "partes da alma" não passariam de funções ou faculdades de um mesmo princípio substancial.
A tese da alma simples, - independente de qual fosse a posição do mesmo Platão, - será dominante no futuro entre os platônicos.
 
Apenas haverá diferenças quanto ao alcance gnosiológico. Enquanto os racionalistas radicais, como o próprio Platão e depois agostinianos e cartesianos, querem que ocorram idéias inteiramente autônomas em relação à experiência, outros, como o racionalismo moderado de Aristóteles, estabelecem pelo menos a origem das idéias, no ser apreendido nas coisas sensíveis.
 
As potências cognoscitivas, embora espirituais, operariam com objetos do mundo sensível.
 
Verificada a morte, para os platônicos não haveria interrupção do exercício do conhecimento. Mas, no racionalismo moderado subsistiriam as potências em estado virtual. Subsistiriam, porque fazem parte da alma, mas não operam, porque lhes falta a matéria em que estão situados os sentidos a partir dos quais recebem o conhecimento dos objetos.
Estabeleceu ainda Platão uma região intermédia entre a parte superior ( ) e as inferiores (sensação e concupiscência). Ali se forma o conhecimento inteligível das coisas sensíveis.
 
Mas nas coisas sensíveis nada há de absoluto, porque suas formas são apenas reflexos das idéias do mundo transcendente. Por isso, tais conhecimentos são relativos e Platão os designou opinião (* ` > " ). "O que nasce é objeto da opinião; o que é, o objeto da inteligência" (República 534).
 
Sob a opinião se reúnem a conjectura e a fé nos mitos, conforme já se adiantou (vd 139). Está a opinião sujeita ao erro, mas pode exercer a função de despertar as idéias inatas, que a inteligência traz de sua vida anterior.
 
No plano emocional, corresponde a opinião ao apetite do coração. Exprime o amor, ou pelo contrário a repulsa, por tudo quanto ocorre de belo e bom, ou feio ocorrido no mundo visível.
Havendo colocado Platão em último plano a sensação (" Ç F 2 0 F 4 H ), que nasce apenas ao se unir a alma imortal ao corpo, não esclareceu até que ponto a alma mortal é distinta da imortal, ou se trata apenas da faculdades da mesma única alma.
 
Diz que os Deuses "formaram em torno da alma um corpo mortal e lhe deram o corpo como uma espécie de veículo, que muniram ainda com uma outra espécie de alma, a mortal. É sede de perigosos e inevitáveis perturbações: o prazer, que atrai ao mal; a dor, que afugenta o bem; a audácia e o tempo, conselheiros imprudentes; a cólera, surda à advertência; a esperança, mãe das ilusões. Com a sensação irracional e o desejo para o que quer que queira, misturando tudo isto, formaram assim a alma mortal" (Timeu 66 c-d).
 
Permanecerá através dos tempos a dificuldade de como explicar o contato do mundo empírico com o espiritual, a passagem do físico ao psíquico. E vice-versa, como do psíquico uma ação pode atingir o corporal. Esta dificuldade atinge sobretudo a maneira radicalmente dualista platônica de separar alma e corpo como substâncias como em si mesmas completas, dirá apenas que se trata de uma união muito íntima; entretanto desta afirmação nada resulta.
 
Na colocação de Aristóteles, em que a alma é forma do corpo, a intercomunicação se apresenta menos obscura.
 
Mais fácil ainda é explicar a intercomunicação reduzindo ao modo do monismo, as operações psíquicas e físicas à atividades de uma substância única, pelo reducionismo de alma e corpo. Mas esta formulação redutora é sempre difícil para um platônico, porque este está sob o efeito da aversão órfica à matéria.
 
No dualismo platônico, desaparece a alma sensível com a morte. Por isso se diz que a alma sensível é uma alma mortal.
 
Os neoplatônicos se dividirão a este respeito. Concordam com Platão a maioria como Plotino, Porfírio, Proclo. Afirma sua continuidade Jâmblico.
A imortalidade da alma decorre de sua espiritualidade e simplicidade, no sentido de que, uma vez postas estas condições, não há porque se possa decompor e desaparecer por degeneração.
 
Tratou Platão da imortalidade em Fedon (70 ss), Fedro ( 245 c), República ( 609 d), Leis (895 e), que são Diálogos de diferentes períodos.
 
Um primeiro argumento é tão só incoativo porque prova apenas a preexistência da alma, com base na ocorrência das idéias universais em nossa mente. Estas supõem a vida anterior, quando as idéias universais da mente se teriam formado pela contemplação das idéias reais.
 
A partir desta preexistência, não há porque não pensar que continuaria a alma existir depois da vida atual; esta atual não seria mais que um evento.
A segunda prova da imortalidade da alma se funda no princípio de que o perecer costuma ser um devir para um estado oposto: do sono para o acordado, do frio para o calor, e inversamente do acordado para o sono, do calor para o frio. E assim também a alma seria um despertar para o dormir, como do dormir para o despertar.
 
Esta ponderação de Platão teria trânsito mais fácil, se o psiquismo fosse considerado apenas uma função intrínseca ao mesmo corpo, como quer o monismo. Então haveria somente um operar e um cessar de operar, que depois seria de novo retomado como um acordar da matéria. Entretanto, a concepção platônica é de alma como substância específica ao lado de outra substância, a corporal.
 
Finalmente, o terceiro argumento de Platão em favor da imortalidade da alma se funda na sua simplicidade. Suposta a simplicidade, não há como supor um desaparecimento por divisão ou corrupção. Também as idéias separadas são simples, e por isso eternas.
 
Todavia, como advertirá Descartes, a continuidade da alma, que tenha sobrevivido à morte, depende contudo da vontade divina em mantê-la.
 
Considerou ainda Platão que a alma não poderia cessar, em vista de ser parte significativa em todo o sistema da atividade. Como auto-movimento, não pode cessar a alma, porque então ocorreria um cessar generalizado dos demais movimentos dela dependentes.
 
O universo, que a alma do mundo movimenta, cairia na inércia; porque isto não acontece, sabemos que a alma continua a subsistir.
A alma preexiste à vida presente. Mas foi criada. Platão alega como prova da preexistência da alma os conteúdos universais do pensamento. No seu entender, estes conteúdos do conhecimento não podiam derivar da experiência ordinária, e por isso deverão ter sido alcançados em uma vida anterior, quando a alma pôde contemplar as idéias reais (ou idéias separadas).
 
Qual a validade deste argumento? Aristóteles se esforçou em provar, contra Platão, que os universais resultam apenas de uma abstração tomada ao ser do sensível. Conhecemos este ser, e a partir dele, por analogia, vamos ao ser em geral e mesmo a Deus. Nada mais conhecemos senão o que assim nos oferece a analogia.
 
O neoplatônico cristão Agostinho, que inspirará o agostinianismo medieval, falará de uma iluminação divino-natural em que Deus, por ocasião de cada idéia universal de nossa mente, faz brilhar aqueles conteúdos universais. Dispensou com este artifício o apelo platônico à vida anterior.
 
Descartes dirá que Deus criou a inteligência humana já com as idéias universais, as quais portanto seriam inatas.
 
O nominalismo, quer empirista, quer empirista, nega simplesmente a existência dos universais, reduzindo-os a uma generalização, sem maior valor que a formalização de classes que não passam de nomes.
 
A alma é criada. Platão, apesar de conhecer a doutrina pitagórica da existência dos espíritos desde sempre, não acompanhou aqui o pensamento pitagórico.
 
Para Platão, a alma é eterna apenas no tempo futuro (vd 214).
 
É a alma fabricada pelo Demiurgo, com uma natureza análoga a da Alma do mundo, todavia menos perfeita (Timeu 41 d).
 
No primeiro nascimento as almas são todas iguais, diferenciando-se nas sucessivas reencarnações (Timeu 41 e).
 
No final de todo o processo, ou seja após a morte, a alma fica outra vez sem as partes sensíveis que lhe haviam sido acrescidas. Retornando ao estado puramente espiritual, a alma fica como inicialmente se encontrava. Estivera num corpo para se purificar de algum delito. Uma vez purificada, não teria mais sentido permanecer aprisionada no corpo e com os seus órgãos sensíveis.
 
IV - Relações de alma e corpo, preexistência, metempsicose

A união de corpo e alma é extrínseca, porque para Platão o todo humano é constituído de duas substâncias, cada uma por si completa.
 
Ninguém antes de Aristóteles oferecerá uma doutrina sobre a união substancial, com o corpo e alma a se unir como substâncias incompletas, entendida a alma como forma substancial da matéria corporal.
 
Entretanto, a isto conduzia a própria doutrina de matéria e forma, que em Platão já se encontra em estado avançado. Aliás Aristóteles também só alcança no fim de sua vida. A posição de Aristóteles é meio caminho para a dos que reduzem o psiquismo à mera função da matéria, ainda que uma função especificamente espiritual.
 
Entretanto, quer Platão, quer Aristóteles são dualistas. A posição de Aristóteles é apenas mais moderada, e foi considerada mais favorável ao desaparecimento da alma depois da morte do indivíduo.
 
Antes de Platão e Aristóteles a vida psíquica já fora conceituada ao modo monista. O próprio ser material foi considerado intrinsecamente vivo, sobretudo pelos filósofos da escola jônicas.
 
Como contraste ao modo monista de conceituar, o dualismo de Platão ficou sendo uma filosofia simpática às religiões de fundo mazdeísta, órfico, pitagórico, cristão e similares.
 
A não integração perfeita do corpo como parte isonômica do ser humano, fez com que Platão insistisse que a personalidade essencial do homem estivesse apenas na alma. Portanto, a alma seria o homem.
 "Ora, se em tudo é necessário ser dócil à palavra do legislador, é sobretudo quando declara que entre a alma e o corpo há uma diferença radical, e que na vida o que precisamente faz de cada um de nós o que somos, não é outra coisa que sua alma, enquanto que o corpo é uma sombra de que cada um de nós é individualmente acompanhado; é pois, com razão, que, do corpo de um homem morto, se diz que é um simulacro deste homem, pois que cada uma é esta coisa imperecível à qual damos o nome de alma, que entra na comunhão dos deuses para dar conte de si" (Leis 959 a-b).
Estabelecida uma vez a separação de alma e corpo à maneira de substâncias completas e autônomas, estava também facilitada a aceitação das doutrinas sobre a preexistência e a metempsicose, bem como a prática dos mistérios (ou sacramentos).
 
Os pitagóricos e os órficos em geral desenvolveram tais doutrinas na Grécia, as quais haviam derivada do mundo zoroátrico persa, então em contato com o Ocidente, em virtude da integração política acontecida a partir do século 5-o a.C. A partir deste contexto, criou Platão sua ideologia dualista.
O lugar natural das almas é o céu astronômico, havendo sido criado uma para cada estrela. Repete-se de novo aqui o pensamento dos pitagóricos, que Platão aprofunda, e que por diferentes caminhos influenciou a imaginação cristã e islâmica sobre a vida futura e a sua ascese de preparação do espírito em libertação das limitações terrestres.
 
Exprime-se Platão da seguinte forma no Fédon, redigido após a primeira viagem à Itália pitagórica, em que trata da sobrevivência da alma, estando entre os dialogantes inclusive dois pitagóricos, Símias e Cebes. Diz Platão, pela boca de Sócrates:
"Durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! Ora, este objeto é, como dizíamos, a verdade.
Não somente mil e uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças, e eis-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real!
O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas - que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer
Vede, pelo contrário, o que ele nos dá: nada como o corpo e suas concupisciências, para provocar o aparecimento de guerras, dissensões, batalhas; com efeito, na posse de bens é que reside a causa original de todas as guerras, e, se somos irresistivelmente impedidos a amontoar bens, fazemo-lo por causa do corpo, de quem somos míseros escravos!
Por culpa sua ainda e por causa de tudo isso, temos preguiça de filosofar" (Fédon 66 b-d).
Apenas criadas pelo Demiurgo, as almas são entregues ao "instrumento do tempo".
"Nascidas iguais, a primeira encarnação se dá sobre a terra
Depois da primeira vida a alma comparece diante do tribunal dos mortos, dali resultando que as de boas ações irão para o campo dos benaventurados, as de más ações pra o mundo subterrâneo (ou inferno).
Depois de mil anos ocorrerá o segundo nascimento subterrâneo. Para os bons desta vez a escolha de espécie de vida será livre, inclusive para ser homem ou mulher" (República).
 
Não se encontra em Platão uma prova estrita para a metempsicose ainda que a apresente uma prova a existência em uma vida anterior. A metempsicose foi uma doutrina vigente então, sobretudo entre os pitagóricos. Não discutindo provas, quer antes ocupar-se do lado moral do homem, alcançado pela recompensa e castigo.
 
Na visão antropológica geral do ser humano, Platão inclui o homem, a mulher, os animais como que num mesmo leque, em que a diversificação se deu por diferenciação. Este princípio da diferenciação concorda com a moderna conceituação evolucionista de tudo.
 
Mas a diferenciação se dá a partir de cima, ao passo que hoje se pensa pela forma inversa, evoluindo as formas do animal para o homem, do feminino para o masculino.
 
De qualquer maneira, a visão antropológica de Platão integra as diferentes modalidades de vida, embora invertendo a direção de sua formação.
 
Descrevendo a ação do Autor das coisas, diz Platão:
"Na mesma copa em que ele na primeira mescla compôs a alma do mundo, verteu o que lhe restava dos primeiros ingredientes e os mesclou de uma maneira análoga; eram menos puros que os anteriores, duas ou três vezes menos.
Depois de os haver fundido em um todo, dividiu a este em tantas almas quantos astros há; deu uma a cada um destes; fê-las ver a natureza do universo e lhes revelou seus eternos destinos; todas tinham primitivamente a mesma origem, a fim de que nenhuma pudesse queixar-se de haver sido preterida; semeadas nos instrumentos do tempo, se revestiriam da natureza viva e tratariam do culto aos deuses; ora, sendo dupla a natureza humana, o sexo superior se chama viril; implantaram-se as almas no corpo por uma espécie de necessidade, ora com perdas, ora com recuperações; experimentam em primeiro lugar a sensação comum a todas, com impressões violentas, em segundo lugar o amor mesclado de prazer e dor, além de temor, cólera e todas as paixões que seguem ou se opõem a aquelas; os que as dominam vivem na justiça; vivem na injustiça os que se deixaram dominar por elas.
Quem fizer um bom uso do tempo que se lhe der de vida voltará ao astro que lhe é próprio para residir nele e compartilhar uma vida de felicidade e de acordo com a sua condição. Quem falhar será convertido em mulher em um segundo nascimento.
Se nem ainda então cessar de ser mau segundo a natureza de seus vícios, em um terceiro nascimento será convertido no animal ao qual, pelos seus costumes, mais se assemelhou. Em fim, suas metamorfoses e nem seus tormentos terminarão enquanto a razão não dominar este ondular tumultuado de partes de fogo, de água, de ar, e de terra, e só então recuperará sua primeira excelência e sua dignidade.
Uma vez feitas conhecidas às almas todas estas leis, e para não ter que responder depois pela maldade destas almas, semeou Deus umas na Terra, outras na Lua, e também nos demais instrumentos do tempo. Depois de distribuí-las assim, deixou aos deuses jovens o cuidado de dar forma aos corpos mortais, de acrescentar à alma humana o que ainda lhe faltava e de suprir a todas as sua necessidade, a fim de guiar e conduzir a este vivente mortal o melhor e mais sabidamente, a menos que ele mesmo não seja a causa de suas próprias desgraças.
Estabelecia esta ordem, o Autor das coisas voltou ao seu repouso habitual" (Timeu 41 d-42 e).
 
Origem do homem, da mulher, dos animais e seus gêneros. Na maneira como procedeu Platão, tudo se fez ainda como se a mulher fosse inferior, reafirmando a severidade com que a julgavam os antigos.
 
Não o fez, apenas em uma passagem, mas com frequência, - em República (I, IV e V); Leis (V, VI) e ainda no final de Timeu, (90-92), que logo adiante citaremos. Ali o homem, a mulher, o animal são apresentados derivando em um mesmo leque antropológico descendente, ao passo que no sistema evolutivo hoje conhecido os sexos se diferenciam em termos ascendentes do feminino para o masculino, diferenciando-se sobretudo este nas formas superiores.
  "Parece-me que chegamos ao término da discussão que, ao começar, anunciou ter como propósito a história do universo até a formação do homem. Somente nos falta expor em poucas palavras a origem dos outros animais, sem deter-nos senão o necessário para o assunto. Eis o que há a dizer.
Entre os homens que receberam a existência, houve alguns que se mostraram muito laxos, vivendo em injustiça; tudo faz supor que em sua existência foram metamorfoseados em mulheres. Neste tempo e em razão disto criaram os deuses o desejo de coito, formando do homem um tipo de animal, da mulher outro tipo de animal, procedendo do seguinte modo.
O canal da bebida, depois de atravessar o pulmão e penetrar por debaixo dos rins na bexiga, e ali coletar a água para ser expelida por pressão do ar, se comunica ali através de um orifício com a medula, que desce da cabeça através do pescoço e a espinha dorsal, substância que anteriormente chamamos substância germinativa.
Este esperma vivente encontra nesta saída o ar necessário para a respiração e causa um vivo desejo de emissão, produzindo assim o amor da geração. Por isso as partes genitais do homem, surdas naturalmente à voz da persuasão e inimigas de todo jugo e freio, se assemelham a um animal rebelde à razão, que, arrebatado por furiosos apetites, se esforça em submeter tudo e em mandar em tudo.
Nas mulheres, o útero e a vulva não se parecem menos a um animal desejoso de procriar, de maneira que, se permanece sem produzir fruto por largo tempo da idade propícia, se irrita e se molesta, errando de um lado a outro dentro do seu corpo. Obstrui as passagens do ar, impede a respiração, gera angustias e engendra enfermidades, das quais o único remédio é a união do homem e da mulher, acoitando pelo desejo e amor, para que nasça um fruto, que colhem como o das árvores. Semeiam no útero, como em um campo fértil, animais sem forma, invisíveis por sua pequenez, logo diferenciando suas partes ao desenvolvê-las, as alimentam no interior e finalmente dando-lhes à luz, fazem deles seres completos.
A raça das aves providas de plumas em vez de pêlo, não é mais que uma ligeira metamorfose desses homens sem malícia, mas superficiais, curiosos das coisa do alto, que, em sua simplicidade, acreditam possam ter sólidos conhecimentos somente pela vista.
Os animais que caminham e as feras procedem de homens estranhos à filosofia e que não se preocupam da natureza do céu, porque incapazes de fazer uso das revoluções que se verificam na cabeça inclinados para a terra, com a qual têm uma espécie de parentesco; sua cabeça é alargada e toma mil formas segundo a maneira como a preguiça comprimiu nelas os círculos da alma; se têm quatro pés ou mais, é porque Deus quis que os mais estúpidos tivessem mais apoios e por meio deles estivessem mais estreitamente ligados à terra.
Aos mais desprezíveis dentre eles, cujo corpo se estende em toda a longitude, sobre a terra, como não tinham necessidade de pés, os deuses os fizeram sem eles para se arrastarem sobre o solo.
O quarto gênero que vive na água, provém dos homens desprovidos de inteligência e conhecimentos; por sua alma impura, por culpável negligencia, os deuses não os julgaram dignos de respirar o ar puro, e, em vez de um sopro puro e sutil os condenaram a não respirar mais que um espesso líquido no fundo das águas. Tal é a raça dos peixes, ostras e animais aquáticos, relegados por causa de sua extrema ignorância a aquelas estranhas moradas. Por estas mesmas razões se transformam hoje em dia os animais uns nos outros segundo desçam da inteligência à estupidez, ou se elevam da estupidez à inteligência" (Timeu 90 e - 92 c).

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