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René
Descartes
Por: Carlos Antonio Fragoso
Guimarães
René Descartes (ou Renato
Cartesius, como ele assinava, em latim) nasceu em La Haye, Tourenne,
França, em 1596. Sendo de família nobre, foi enviando para um colégio
jesuíta em La Flèche, uma das mais célebres escolas da época.
Recebendo a melhor formação humanista e filosófica possível dentro das
bases escolástica, com abertura relativa também para o estudo das
descobertas científicas da época e ênfase na matemática, nem por isso
Descartes deixou de se sentir insatisfeito, pois achava a orientação
tradicionalista da escola um gritante contraste com a visão de mundo que
surgia do desenvolvimento científico (especialmente em Física e
Astronomia) que desenvolvia em toda parte, financiado pela emergente
classe burguesa, boa parte da qual era protestante. O que mais o
incomodava era a ausência de uma metodologia que abraçasse as idéias e as
harmonizasse com uma práxis que conduzissem o estudioso numa forma que lhe
possibilitasse guiar-se na "busca da verdade".
O ensino de filosofia, em La Flèche, que era ministrado tendo por modelo a
escolástica medieval e a visão de mundo de Aristóteles e São Tomás de
Aquino, levava o espírito dos estudantes para o passado, condicionava a
percepção de mundo e frequentemente lá transformavam-os em conservadores
eruditos. O resultado era uma espécie de incompetência intelectual e moral
(envoltas em trajes de sabedoria), uma falta de preparo e de
adaptabilidade eficaz para os problemas do presente. Isto levou Descartes
a um incômodo impasse. Para ele o estudo intensivo de uma visão de mundo
já ultrapassada seria como viajar. "Mas quando dedicamos tempo demais a
viajar, acabamos nos tornando estrangeiros em nosso próprio país, de modo
que aquele que é por demais curioso das coisas do passado, só valorizando
o que já foi, na maioria das vezes torna-se muito ignorante das coisas
presentes" (Descartes). E o "presente", na época de Descartes, era o do
desenvolvimento do empirismo, da técnica da fabricação de relógios e
outros instrumentos, do desenvolvimento da mecânica, do questionamento do
poder clerical, do comércio, do florescimento do capitalismo. Mais do que
tudo, era a época de um novo alvorecer: a época da Revolução Científica,
cujos principais expoentes até então foram Nicolau Copérnico, Johannes
Kepler e Galileu-Galilei.
O papel destes gênios na obra de Dscartes é visível: Copérnico pela
coragem de desafiar (mesmo que postumamente, com a publicação de seus
trabalhos no ano de sua morte) uma concepção geocêntrica muito cara à
Igreja. Depois de Copérnico, a Terra deixou de ser o centro do universo
para tornar-se mais um planeta. A revolução de tal "heresia" parece hoje
difícil de ser bem avaliada, mas representou um profundo golpe na
hegemonia do conhecimento científico, que estava nas mãos dos padres de
Roma; Kepler, por formular suas célebres leis empíricas dos movimentos
planetários, que veio a corroborar o sistema de Copérnico, e a demonstrar
que o conhecimento da natureza poderia ser adquirido por meio de um
trabalho laborioso indepenente do aval religioso; Galileu, por ser o real
mentor da mudança de paradigma e visão de mundo da ciência de sua época.
Ao dirigir seu telescópio para as estrelas, Galileu provou inconteste que
a hipótese de Copérnico era uma teoria válida. Além disso, Galileu foi o
primeiro a combinar sistematicamente a experimentação científica com o uso
da linguagem matemática. Isso não foi feito apenas porque a matemática é a
"linguagem com que Deus fez o universo", como dira ele, mas por que se
prestava à perfeição para que hipóteses fossem divulgadas e compreendidas
apenas por alguns poucos "iniciados", escapando, assim, da fiscalização
inquisitorial. Como disse Fritjof Capra, "Os dois aspectos pioneiros do
trabalho de Galileu - a abordagem empírica e o uso de uma descrição
matemática da natureza - tornaram-se as características dominantes da
ciência no século XVII e subisistiram como importantes critérios das
teorias científicas até hoje".
Para que os cientistas pudessem descrever a natureza em forma matemática,
e, assim, poderem ter uma espaço para a discussão de suas idéias sem um
grande risco ante os olhos de Roma, Galileu postulou que eles (os
cientistas) deveriam se restringir ao estudo das propriedades essenciais
dos corpos, ou seja, a todas as propriedadades que pudessem ser
mensuradas: forma, quantidade, movimento. Tudo o mais deveria ser posto de
lado. Embora esta abordagem tenha sido muito bem sucedida e tenha
permitido o desenvolvimento da ciência, o seu lado negativo foi, como nos
diz R. D. Laing, que "perderam-se a visão, o som, o gosto, o olfato e o
tato, e com eles foram-se a sensibilidade estética e ética, a qualidade,
os valores; todos os sentimentos, motivos, intenções, a alma, a
consciência, o espírito. A experiência, como um fato vivido pelo sujeito,
foi expulsa do domínio do discusso científico". Segundo Laing, nada mudou
mais o nosso mundo do que a obsessão dos cientistas pela medição e pela
quantificação (Capra, 1986).
Foi nesse clima "Galileano" que Descartes respirou o ar que lhe moldaria o
gênio. Depois de ter obtido o bacharelado em Direito, pela universidade de
Poitiers, Descartes sentiu-se ainda mais confuso e decide se dedicar às
armas e alista-se, em 1618, nas tropas de Maurício de Nassau (um nosso
conhecido, que esteve no Nordeste do Brasil durante a ocupação holandesa
na região), que na ocasião combatia contra os espanhois pela liberdade da
Holanda. Por esta época, conhece um jovem físico e matemático, Isaac
Beeckman, que o estimulou a estudar física.
Aos 23 anos de idade, Descartes estava em Ulma, ao lado das tropas de
Maximiliano da Baviera, quando, entre 10 e 11 de novembro de 1619, ele
relata ter tido uma "revelação" ou iluminação intelectual, que iria marcar
toda a sua produção a partir de então. Numa noite, após horas de reflexão
sobre todo o conhecimento que havia adquirido até aquele dia, ele caiu
numa espécie de transe sonambúlico e, então, teve um lampejo súbito onde
via, ou melhor, percebia "os alicerces de uma ciência maravilhosa" que
prometia ser um método para a unificação de todo o saber e que
desenvolveria em sua produção, tendo sido cristalizada, em parte, em seu
clássico "O Discurso do Método". A visão de Descartes despertou nele a
crença na certeza do conhecimento científico por meio da matemática. Nos
fala Capra que "A crença na certeza do conhecimento científico está na
própria base da filosofia cartesiana e na visão de mundo dela derivada, e
foi aí, nessa premissa fundamental, que Descartes errou. A Física do
século XX mostra-nos convicentemente que não existe verdade absoluta em
ciência, que todos os conceitos e teorias são limitados. A crença
cartesiana na verdade infalível da ciência ainda é, hoje, muito difundida
e reflete-se no cientificismo que se tornou típico de nossa cultura
ocidental. O método de pensamento analítico de Descartes e sua concepção
mecanicista da natureza influenciaram todos os ramos da ciência moderna e
podem ainda hoje ser muito úteis. Mas só serão verdadeiramente úteis se
suas limitações forem reconhecidas (...)." (Capra, 1986, p. 53).
A certeza cartesiana é matemática. Descartes acreditava, partindo de
Galileu, que a chave para a compreensão do universo era a sua estrutura
matemática. Seu método, pois, consistia em subdividir qualquer problema a
seus níveis mínimos, separar "as peças que constituem o relógio",
reduzindo tudo até seus componentes fundamentais para, a partir dese
nível, se perceber suas relações. Esse método é analítico e reducionista.
Não aceita que um todo possa ser compreensível como uma totalidade
orgânica ou que esta todo possa ter características que superem a mera
soma de suas partes constituintes. Assim, ele negligencia um
quebra-cabeças montado como sendo, em seu todo, um sistema significativo.
Só a interrelação lógica das peças - se houver - é que, para o método
cartesiano, nos dará uma compreensão de todo o quebra-cabeças, o que,
convenhamos, é um absurdo quando tomado como regra geral, e não como regra
para alguns fenômenos. Esta ênfase no método analítico tornou-se uma
característica essencial do moderno pensamento científico. Foi ele que
possibilitou levar o homem à lua, mas sua excessiva dominância nos meios
científicos também levou à fragmentação características das
especializações dos nossos meios acadêmicos, plenos de cientificismo, e no
nosso pensamento em geral. Este método, tomando como um dogma, levou à
atitude generalizada de reducionismo em ciência - a crença de que a
compreensão de partes que constituem um todo (sem levar em conta
inter-influências ambientais ou não lineares) podem ser adquiridas
plenamente pela análise.
Tendo se estabelecido em definitivo na Holanda, pela liberdade e
tolerância desta terra à novas idéias, Descartes aceitou a sugestão do
padre Marino Mersenne e do Cardeal Pierre de Bérulle para escrever um
tratado sobre metafísica. Mas tal trabalho foi interrompido para escrever
o seu Traité de physique. Entretanto, tomando conhecimento da condenação
de Galileu por sua aceitação da tese copernicana, Descartes, que
compartilhava da mesma e a expunha em seu Tratado, caiu em grande
perturbação, e interrompeu o aperfeiçoamento da obra e/ou não
divulgando-a. Superada esta fase, Descartes passou a se dedicar ao
problema da objetividade da razão frente a Deus. Assim, entre 1633 e 1637,
Descartes passou a fundir suas idéias metafísicas com suas pesquisas
científicas, escrevendo seu livro mais famoso: O Discurso do Método, que
fazia a introdução de três ensaios científicos: a Dioptrique, o Méteores e
a Geométrie . Diferentemente de Galileu, Descartes considerou que era
fundamental tentar expor o caráter objetivo da razão e indicar regras para
alcançar esta objetividade (este conceito de objetividade é muito
questionável hoje em dia. Qualquer escolha de qualquer método ou padrão de
medição já demonstra, pela escolha em sí, um grau enorme de
subjetividade).
Nesse mesmo período, Descartes se envolve emocionalmente com Helène Jans,
com o qual teve uma filhinha amada, Francine, que morreu aos cinco anos. A
dor pela perda da filhinha querida acabou por dominar Descartes, deixando
marcas em seu pensamento. Ele retomou a elaboração de seu Tratado de
Metafísica, agora sob a forma de Meditações, obra que reflete uma alma
angustiada. Este lado espiritualista de Descartes é frequentemente
negligenciado pelos estudiosos modernos. Apesar das polêmicas que seus
trabalhos metafísicos e científicos provocam, Descartes se lança à
elaboração de um trabalho arrojado: os Principia philosophiae que é
dedicada à princesa Isabel, filha de Frederico V. Graças a esta amizade
entre Isabel e Descartes, temos uma coleção de cartas que esclarece muitos
pontos obscuros de suas idéias, particulamente sua concepção da relação da
alma (res cogitans) com o corpo e a matéria (res extensa), sobre a moral e
o livre-arbítrio.
Em 1649, Descartes aceita um convite da rainha Cristina da Suécia, e
muda-se para o novo país. Mas isto acabou por causar a morte de Descartes,
pois a rainha Cristina tinha o hábito de ter suas conversações às cinco
horas da manhã, o que obrigava Descartes a se levantar muito cedo, o que,
junto com o tremendo frio da Suécia, abalou a já frágil constituição
física do filósofo. Assim, ao abandonar a corte sueca , Descartes pega uma
grave pneumonia que o levou à morte, em 1650.
A Herança Cartesiana
Toda a concepção de mundo e de homem de Descartes se baseia na divisão da
natureza em dois domínio opostos: o da mente ou espírito (res cogitans), a
"coisa pensante", e o da matéria (res extensa), a "coisa extensa". Mente e
matéria seriam criações de Deus, partida e ponto de referência comum a
estas duas realidades. Para Descartes (embora os guardiões do racionalismo
tentem passar por cima deste ponto), a existência de Deus era essencial à
sua filosofia científica, embora seus seguidores de séculos posteriores
fizessem de tudo para omitir qualquer referência explícita à Deus, mas
mantendo a divisão cartesiana entre as duas realidade: as ciências humanas
englobandas na res cogitans e as naturais na res extensa.
Em sua concepção, influenciada pelos avanços na técnica da relojoaria
holandesa, Descartes achava que o universo nada mais era que uma máquina.
A natureza funcionava mecanicamente de acordo com leis matematizáveis.
Esse quadro tornou-se o paradigma dominante na ciências até nossos dias.
Ela passou a orientar a observação e produção científica até que a física
do século XX passou a questionar seus pressupostos mecanicistas básicos.
Em sua tentativa de construir uma ciência natural completa, Descartes
ampliou sua concepção de mundo aos reinos biológicos. Plantas e animais
nada mais eram que simples máquinas. Esta concepção criou raízes profundas
com conseqüêcias não só a nível biológico, como psicológico (lembremo-nos
do Behaviorismo, em Psicologia) e até mesmo econômico (manipulação
comercial de animais sem consideração ética alguma). O corpo humano também
era uma máquina, diferenciada porque seria habitada por uma alma
inteligente, distinguível da máquina-corpo e ligado a ela pela glândula
pituitária (é interessante observar que os espíritas dizem que esta
glândula têm uma importância muito grande na interrelção espírito-corpo).
As conseqüências dessa visão mecanicista da vida para a medicia foram
óbvias, tendo exercido uma grande motivação no desenvolvimento da
Psicologia nos seus primórdios. As conseqüências adversas, porém, são
igualmente óbvias: na medicina, por exemplo, a adesão rígida a este modelo
impede os médicos (os grandes cartesianos) de compreender como muitas das
mais terríveis enfermidades da atualidade possuem um forte vínculo
psicossomático e sócio-ambiental.
O objetivo da "ciência" de Descartes era a de usar seu método analítico
para formar uma descrição racional completa de todos os fenômenos naturais
num único sistema preciso de princípios mecânicos regidos por relações
matemáticas. É claro que ele não poderia executar sozinho este plano
grandioso. Mas seu método de raciocínio e as linhas gerais da teoria dos
fenômenos naturais que ofereceu embasaram o pensamento científico
ocidental por três séculos (Capra, 1986). Mesmo que a sua visão de mundo
apresente, hoje, sérias limitações, o método geral que ele nos deu ainda é
muito útil na abordagem de problemas intelecutais e funciona muito bem.
Ele possibilita, ainda, uma notável clareza de pensamento, o qual nos
possibilita, inclusive, questionar sua própria origem e visão de mundo.
Descartes é, realmente, uma figura fascinante.
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