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Reflexão
sobre o Caso Richthofen
Por: Maria Aparecida Diniz Bressani
O ser humano é um animal racional. Enquanto animal, o ser humano
é um ser amoral. Não nascemos seres morais, mas, sim, desenvolvemos a moral
graças a sociabilização recebida através da racionalidade e subjetividade
humana.
A Mitologia Grega nos conta com suas alegorias a história do desenvolvimento do
ser humano. Através da Mitologia Grega podemos encontrar mais ou menos como e
quando se deram os primórdios da formação dos conceitos morais que foram
desenvolvidos pelos homens. Foi justamente com a “posse” de Júpiter – a
divindade suprema da terceira e última geração divina – que percebemos o advento
dos valores morais se instalando, pois até aquele momento reinava a truculência,
a barbárie e a lei do mais forte.
Júpiter traz a religiosidade – ou seja, a necessidade do ser humano de se
re-ligar a um plano superior e mais elevado de si mesmo que não apenas o seu
lado animal. O culto a Júpiter traz ao homem a necessidade de se agregar e o
desenvolvimento da consciência de que a força está na união, formando-se, então,
os clãs.
Quando o homem descobriu que dividir a sua caça era mais vantajoso do que
guardá-la só para si, pois dividi-la com outro ser humano - que não havia
conseguido caçar nada naquele momento - possibilitaria que num futuro próximo
este outro homem dividisse consigo o que havia conseguido... Percebeu, então,
que diminuía seus períodos de fome e o conseqüente risco de morte, preservando
melhor sua vida. Começou aí a formar-se um acordo tácito de ajuda mútua. A
partir de então, os seres humanos agregaram-se, somando forças e favorecendo a
preservação da própria espécie. Ao agregar-se, descobriu que seria necessário
estabelecer algumas regras de convivência.
O ser humano, no princípio de sua existência, lutava pela sua sobrevivência e
utilizava-se, então, de toda sua agressividade disponível na conquista e disputa
de alimentos. Foi a sua necessidade gregária – ditada pela própria sobrevivência
– que tornou necessário constituir leis para se relacionar em grupo. As leis
foram institucionalizadas para propiciar o fortalecimento do grupo e a
conseqüente preservação da espécie, através da união de forças e canalizando
toda aquela agressividade para os “inimigos” extragrupo (ou predadores) e para a
perseguição da caça. Começou, a partir daí, a formar-se o senso moral.
Por moral entendo todas as regras sobre o que é certo ou errado para uma
convivência harmoniosa entre os seres humanos, onde predomina o respeito pelo
outro e por si mesmo, permitindo a integração dos indivíduos no contexto social
e promovendo a preservação da espécie.
Então, podemos perceber que todos os nossos valores morais e éticos foram
ditados pela necessidade da sobrevivência enquanto espécie – caso contrário não
seriam necessárias leis punitivas se tais valores éticos não vigorassem. E
trazemos até hoje – guardando as devidas proporções evolutivas do ser humano –
em nossa formação, através da educação, a sociabilização necessária para que nos
tornemos seres humanos e indivíduos que convivem e se relacionam com outros
seres humanos e indivíduos dentro de determinadas regras éticas e morais.
Os valores éticos e morais – promovidos pelas regras mundanas e divinas –
através das leis dos homens e das leis de Deus – são transmitidas por meio da
educação dada pelos pais e recebidas e absorvidas pelos filhos.
Temos então na educação o veículo de sociabilização do ser humano. Como bem
sabemos é da célula familiar que se forma o organismo maior, que é a sociedade.
Os pais educam, passam suas regras morais no sentido de tornar aquele ser – que
chamam de filho – um indivíduo apto a integrar a sociedade e participar no seu
crescimento e manutenção.
Os filhos recebem os valores dos pais (representantes da sociedade), os
absorvem, os internalizam e os fazem seus. Serão, então, inseridos na sociedade
da qual fazem parte comungando de seus valores e leis.
Porém, uma coisa de que não podemos nos esquecer é sobre a predisposição inata
que todos trazemos da capacidade de absorver – quanto e como podemos – todos os
valores recebidos.
É exatamente por essa predisposição inata que compreendemos ter o ser humano
graus de moralidade: nasce amoral, torna-se moral – nos mais variados graus –
desde o absolutamente imoral até aquele indivíduo da mais alta moralidade e de
valores éticos primorosos.
Portanto, temos duas coisas distintas: uma coisa é o que está sendo passado,
outra coisa é o que e como está sendo recebido.
Jung nos diz que temos tudo dentro de nós. Seguindo este pensamento e fazendo um
paralelo com os conceitos morais recebidos, temos, segundo Jung, latente dentro
de nós o bom e o mau, o certo e o errado e “escolhemos” para que lado “queremos”
seguir e em que grau de atuação. Mas, para “escolher” se se segue o bom ou o
mau, o certo ou o errado, tem que ter internalizados e relativamente definidos
tais conceitos para si mesmo.
Neste caso – desta moça que premeditou e organizou a morte de seus pais – não é
o que percebemos, pois parece não haver aí distinção suficiente quanto aos
conceitos de certo e errado para que, por si só, percebesse a gravidade de seu
ato. (Parece que se deu conta – em certa medida – apenas por ocasião da reação
negativa do povo).
Essa falta de consciência da gravidade de seu ato se dá justamente pela falta de
moral e ética internas.
Não podemos nem sequer classificá-la como má pessoa, pois para alguém ser má
pessoa tem que ter um mínimo de moralidade introjetada e, com uma personalidade
imoral, agir contra as regras morais estabelecidas. Aí, sim, poderíamos
classificá-la de má pessoa. Podemos dizê-la ser alguém estéril em sua capacidade
de absorver e desenvolver quaisquer princípios éticos e morais, tornando-se uma
personalidade insensível e amoral. Nasceu amoral e amoral se manteve (e assim o
será sempre). Não absorveu nenhum valor moral e ético que pudesse sensibilizá-la
enquanto ser humano. Ela sente com a cabeça – com pensamento amorais – e não com
o coração.
De vez em quando acontece: como se houvesse um “defeito congênito” filogenético
humano, onde um indivíduo nasce impermeável aos ensinamentos das leis morais,
portanto, não absorve para si valores vigentes da humanidade. Constrói para si
leis próprias, onde a capacidade destrutiva e autodestrutiva parece predominar,
pondo em risco a própria humanidade.
Neste caso, essa pessoa não traz consigo o “imã” que a faria trazer para dentro
de si – introjetar – valores como respeito, gratidão no coração, força moral e
ética, sensibilização ao outro e conseqüente sapiência para a aplicação de tudo
que recebeu, com generosidade, para seu próximo e para a humanidade. Vemos,
então, acontecer, em grau extremo, com essa moça – personalidade insipiente e
refratária – um ato insólito: programa a morte cruel de seus pais sem nenhum
tipo de sentimento quanto à dor de seu irmão, por exemplo, ou à dor de seus pais
diante o massacre sofrido.
Quando alguém diz que matou por amor – onde nem sequer foi movida pelo ódio, mas
sim por grande dificuldade de ouvir um não, por não suportar ter qualquer limite
estipulado para seu querer – percebemos extrema limitação na sua compreensão
sobre a real motivação que a levou a praticar tal ato e nula a sua sensibilidade
quanto a percepção da gravidade de seu ato.
Porém, ela, enquanto elemento da humanidade, torna-se o “paciente identificado”
de uma sociedade doente – pela reação do público e pela repercussão do caso. Por
isto, precisamos nos questionar: como estão nossos valores morais e éticos nas
nossas relações pessoais e profissionais, na nossa relação com a nossa cidade,
na nossa relação com o nosso país?
Toda a população ficou indignada! Mas qual a real razão para tal indignação? Ela
ter tido a fraqueza de caráter de matar seus pais? Ou, mesmo tendo um padrão de
vida, que todos gostariam de ter – e sabemos muito bem que a política econômica
brasileira não o permite tão facilmente – com este ato pôs tudo a perder?
Pelos depoimentos espontâneos que assisti na televisão acredito que a segunda
alternativa é a mais correta. Com que estupefação as pessoas vêem a mudança de
seu endereço de residência!
Por isso a coloco como “paciente identificado” desta nossa sociedade doente; não
apenas da nossa sociedade brasileira, mas, sim, da nossa sociedade humana. Bem
como o Bin Laden, com seu terrorismo desenfreado, cruel e indiscriminado, o
presidente dos Estados Unidos, George Bush, em sua sede de poder infantil e
inconseqüente, e aquelas crianças e adolescentes do mundo todo que levam armas
nas escolas e matam colegas e professores por algum desafeto banal.
Hoje o valor da vida humana está banalizado exatamente por absoluta falta de
valores morais e éticos definidos, precisos e corretamente determinados.
Estamos vivendo um momento histórico onde ninguém mais sabe quais são seus reais
direitos e deveres enquanto marido e mulher, namorada e namorado, pai/mãe e
filhos, entre outros. Todos os papéis que representamos na sociedade atual estão
“frouxos” e imprecisos.
Crises pessoais de equívocos quanto aos seus direitos e deveres morais numa
relação específica, são na verdade coletivas.
Parece haver hoje uma crise sobre o que ser uma autoridade para uma criança, ou
seja, quais são os meus direitos e deveres como pai diante dela e vice-versa.
Parece que estamos mais do que nunca numa crise de valores sobre os diversos
papéis que representamos na nossa sociedade contemporânea.
Nas falas dos indignados percebo uma sociedade doente, com seu senso moral e
ético debilitado e desfocado. O incremento da violência urbana cada vez mais
dessensibiliza o ser humano, quando não consegue perceber mais o limite entre o
que é respeito ou a falta dele nas relações. Perdeu-se o foco dos valores éticos
nas relações humanas. Parece que regredimos, que voltamos àquela época em que o
que valia era a força – hoje, como gladiadores modernos, o que vale é a força da
inteligência, do conhecimento e da esperteza para subjugar o outro – numa
disputa desenfreada pela sobrevivência.
Por isso, enquanto sociedade humana, precisamos nos questionar por qual caminho
estamos seguindo e precisamos começar por cada um de nós – indivíduos, átomos
desta massa social – este questionamento.
Eu, como integrante da sociedade humana, sou bastante positiva e percebo que
existem mais pessoas do bem, e que, tirando uma média, há mais pessoas morais e
éticas, que lutam pelo bem e pela sobrevivência de sua raça do que o contrário –
constatação óbvia – se não já teríamos sucumbido enquanto espécie.
Como psicoterapeuta percebo um crescimento desta busca do questionamento, do
aprimoramento e da assertividade enquanto ser humano e indivíduo pertencente à
sociedade humana.
Portanto, o diagnóstico é favorável à cura desde que re-estabeleçamos os valores
morais e éticos dentro das relações humanas, levando-se em conta a sofisticação
das mesmas.
Quanto àquela moça, lastimavelmente, ela não tem cura, nasceu com um “gene”
moral defeituoso.
Em relação a nós, valores como amor, respeito mútuo, dignidade, sensibilidade,
cordialidade, generosidade, confiança, amizade, entre tantos outros valores
positivos e construtivos, têm que estar presentes, em tempo integral, nas nossas
relações humanas para que a cura ocorra.
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