Hobbes, Do De Cive ao Leviatã

Por Antônio Rogério da Silva

Os dois livros principais de Hobbes possuem efetivamente o mesmo conteúdo, dispostos em estruturas diferentes. Enquanto De Cive apresenta logo de início as premissas de seu argumento central, no Leviatã estas são postas ao final da primeira parte, depois de uma longa exposição de uma concepção materialista da natureza humana e de uma interpretação nominalista dos principais conceitos que serão mobilizados para a defesa da fundação do Estado civil, como consequência de pactos entre homens livres e iguais. De uma certa perspectiva, pode-se dizer que o segundo livro é um desenvolvimento sistemático mais rigoroso das idéias expostas brevemente no primeiro.

Na "Epístola Dedicatória" ao conde William de Devonshire, inserida em De Cive, Hobbes revela sua admiração pelas obras arquitetônicas e objetos mecânicos produzidos em seu tempo pelo concurso da geometria e da matemática, em geral. Imagina, então, poder, apoiado no mesmo método fundado na precisão das grandezas geométricas, contribuir para solução das disputas sobre justiça e moral, ajudando assim a estabelecer uma paz duradoura entre os homens. Para tanto, bastaria que encontrasse os postulados incontestáveis da natureza humana e a partir deles até concluir pela necessidade de se respeitar os contratos e a palavra empenhada (3).

Os princípios encontrados por Hobbes que tanto escandalizaram a sociedade da época foram colocados por ele nos seguintes termos: primeiro, "o da natural cupidez com que cada homem exige para si uso próprio das coisas comuns, e [segundo] o da razão natural que faz o homem tentar evitar a morte violenta como mal supremo da natureza" (4). Posto de outro modo, a condição de igual vulnerabilidade na luta pela sobrevivência faz com que os seres humanos busquem na natureza, cada um por si, garantir os recursos necessários a sua subsistência, eventualmente entrando em conflito uns com os outros, ao mesmo tempo em que a razão procura evitar os riscos inerentes à execução de tais tarefas. Interpretado desta maneira, o ponto de partida tomado por Hobbes antecipou em duzentos anos o pano de fundo da teoria da evolução darwiniana: a luta pela sobrevivência.

Os seres humanos encontram-se em uma guerra permanente de todos contra todos e para evitar o pior é que procuram se reunir em sociedade, sob a condição de que cada um abra mão de causar dano ao outro. "O homem é um lobo para o homem", escreve Hobbes ao conde de Devonshire, logo depois de colocar que "o homem é um deus para o homem". Pois, embora os bons cidadãos aproximem-se de Deus, exercendo as virtudes da paz - justiça e caridade -, por causa da maldade alheia, para ter segurança, eles recorreriam às virtudes da guerra - o uso da violência e da intriga (5).

O significado da capacidade de "causar dano" foi sutilmente reformulado entre De Cive e Leviatã. Naquele, esta capacidade aparece como uma "inclinação natural" (6) decorrente das paixões humanas, enquanto no último, decorre da condição de igualdade para obtenção dos meios necessários para atingirem seus fins de auto-conservação e uma vida confortável (7). Em ambos os casos, a maneira pela qual a razão natural encontrara uma saída a essa situação miserável seria o instrumento do contrato, através do qual buscam a paz ao renuciarem o direito a todas as coisas.

Sempre sendo igualmente ameaçados de morte a qualquer instante, paixões como o medo e o desejo de bem-estar, levariam o homem, na perpectiva hobbesiana, a buscar no convívio social a paz necessária para escapar às dificuldades de uma vida curta e difícil. Ao contrário do pensamento comum aos filósofos políticos da Antiguidade, que consideravam a vida em sociedade uma condição natural da espécie, Hobbes via na natureza o conflito permanente de interesses entre indivíduos, buscando cada um por si os escassos recursos existentes. Se os homens, de fato, viviam em sociedade em todo mundo conhecido, tal reunião teriam origem na motivação proporcionada por aquelas paixões em busca de segurança e tranquilidade.

Embora De Cive não tenha uma descrição completa da concepção hobbesiana da natureza humana, tanto este, como o Leviatã, reproduzem a idéia de que a sociedade humana é resultado de uma convenção tácita entre seus membros (8). Não importa, para os efeitos finais da teoria, que tal pacto nunca tenha acontecido em um momento histórico real, Hobbes trabalhava essa hipótese como uma experiência mental de um mundo possível, para depois extrair dela conclusões que pudessem explicar melhor o modo como entendemos o convívio em sociedade.

Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte, e uns confiam nos outros, na condição de simples natureza (que é uma condição de guerra de todos os homens contra todos os homens), a menor suspeita razoável torna nulo esse pacto. Mas se houver um poder comum situado acima dos contratantes, com direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo. Pois aquele que cumpre primeiro não tem qualquer garantia de que o outro também cumprirá depois, porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se não houver o medo de algum poder coercitivo. O qual na condição de simples natureza, onde os homens são todos iguais, e juízes do acerto de seus próprios temores, é impossível ser suposto. Portanto aquele que cumpre primeiro não faz mais do que entregar-se a seu inimigo, contrariamente ao direito (que jamais pode abandonar) de defender sua vida e seus meios de vida.
Mas num Estado civil, onde foi estabelecido um poder para coagir aqueles que de outra maneira violariam sua fé, esse temor deixa de ser razoável. Por esse motivo, aquele que segundo o pacto deve cumprir primeiro é obrigado a fazê-lo. (HOBBES, Th. Leviatã, I parte, cap. XIV, p. 82)

Ao colocar a fundação do Estado civil em termos convencionais, os pressupostos de igualdade e liberdade hão de ser também presumidos e fundamentais para que a conclusão possa ser inferida corretamente. Também é preciso que se acrescente a natureza humana uma razão calculadora, sem a qual não seria possível, a não ser por acaso descobrir no contrato o meio mais eficaz para promover a paz entre todos. O descobrimento dessa linha de raciocínio leva, por fim, à necessidade de constituir instituições que observem a execução dos acordos da maneira que foram estabelecidos. O Estado surge então como instrumento crucial para que o vínculo entre os homens sejam duradouros e factíveis.

Nesse sentido, para que o Estado exerça esse poder de vigilância, todos estão obrigados a abrir mão do uso da força em favor deste terceiro elemento de equilíbrio entre as partes. Portanto, ao soberano - que pode ser um líder entre os homens, ou uma assembléia unificada - deve ser outorgado o direito exclusivo do emprego da força, a fim de manter-se a paz. Qualquer um que procurasse se valer, por conta própria, da força para obter os bens necessários ao seu sustento, estaria retornando ao estado de natureza original e atraindo sobre si a reação de toda uma sociedade, já constituída em torno do soberano. Logo, cada um deve abster-se da tentação de burlar o contrato, para não deflagrar novamente a "guerra de todos contra todos" e despertar a fúria do Leviatã.

A lógica irrefutável que estrutura o Leviatã, sobretudo este, foi construída pela aplicação do método geométrico que Hobbes tanto admirou na obra de Euclides, nas edificações e em máquinas renascentistas. Ao definir previamente cada conceito utilizado em seu argumento, Hobbes pôde montar com precisão as premissas adequadas e engendrar as regras de inferência que conduziram à conclusão obrigatória da necessidade de um Estado absoluto, a partir dos anseios de paz de indivíduos inseguros e igualmente vulneráveis. Tudo isso sem precisar do apelo a divindades ou heróis imaginários. Se De Cive e Leviatã reservam as suas respectivas últimas partes para o tema da religião, isto serve apenas para definir o papel exato da fé na vida humana. O reino de Deus é o da natureza regido por leis naturais, enquanto a Cidade é dominada pelo poder supremo abaixo do divino, do Leviatã, único capaz de interpretar suas leis, sendo esse próprio reino o resultado de um pacto entre o povo eleito e Deus (9). Com Hobbes, o Estado civil moderno está inaugurado e uma nova era pode então começar por meio de um novo arranjo social.

O Estado da Obra

Ainda hoje, nas ocasiões em que políticos e economistas discutem o tamanho mínimo que o Estado deve ter, com exceção de anarquistas e alguns teóricos da evolução da cooperação, todos concordam que a função básica do Estado é manter a paz e o monopólio do uso da violência, no intuito de preservar os pactos. Desse modo, a invenção de Hobbes persiste inabalável. John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e David Hume (1767-1776) tentaram reformular o conceito de contrato, atenuando os princípios pessimistas hobbesianos ou propondo outros, mas a intuição original permaneceu, a despeito no desconforto causado aos opositores do contratualismo.

Tal como Maquiavel no século XVI, Hobbes foi considerado o filósofo maldito do seu tempo. Descartes abominou suas teses, consideradas más e um artifício para defender a monarquia absoluta. Contudo, a maldade que pode haver na sua descrição só é apreciável se a natureza for considerada dotada de princípios morais passíveis de serem resgatados através da suposição que exista uma moral imanente à vida em geral. De qualquer forma ter-se-ia de admitir que seria possível descobrir uma moralidade na natureza, o que é insustentável, devido a falta de uma regra geral de comportamento que seja imputável a todos seres vivos, além de sobreviver e reproduzir. Por outro lado, se o "mal" for entendido como errado, dever-se-ia demonstrar que deles não se conclui a necessidade do poder soberano, ou então que estão em contradição, coisa que em nenhum de seus textos sobre moral ou política Descartes ousou defender.

(...) [Onde] não há propriedade, não pode haver justiça. E onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos (...) (HOBBES, Th. Leviatã, I parte, cap. XV, p. 86).

Ao contrário das acusações de amoralismo, Hobbes tinha consciência de estar inaugurando uma nova ciência de filosofia moral, segundo o método geométrico, tendo o contrato como tese fundamental. O contratualismo é hoje uma das tendências da filosofia moral e política mais vigorosas. Mesmo John Rawls (1921-2002) - um dos mais importantes teóricos da justiça do final do século XX -, um liberal de inspiração kantiana e, portanto, um adversário do contratualismo hobbesiano, utilizou em sua obra principal Uma Teoria da Justiça (1973), de uma experiência mental - a famosa posição original - da qual extraiu os princípios de justiça e diferença que sustentaram sua teoria por décadas, com uma técnica semelhante a de Hobbes, em busca de um ponto arquimediano.

Além desse legado, os teóricos dos jogos e da cooperação, em geral, adotam linhas de investigação do comportamento humano e dos seres vivos em geral que partem da concepção de agentes egoístas, tal como Hobbes iniciou sua argumentação, no intuito de descobrirem novas estratégias e soluções adequadas para os conflitos de interesses individuais, com ou sem o recurso a contratos vinculantes. A Era Moderna passou. A contemporânea esta em transformação e a teoria política de Hobbes continua a desafiar as mentes liberais. Derrubar sua lógica não é fácil. Refutar seus princípios mais difícil ainda, depois que a teoria darwiniana corroborou suas intuições clarividentes. Afinal, a espécie Humana continua a mesma a pelo menos 150 mil anos.