A Vida de Hobbes

Por Antônio Rogério da Silva

O caos político que fermentou a obra de Maquiavel, na Itália do século XVI, reproduziu-se na Inglaterra dos seiscentos, tirando o sossego de Thomas Hobbes. Durante o reinado da Casa de Tudor, a Grã-Bretanha procurou manter-se neutra diante das Guerras religiosas que abalavam o continente. A França viu o ódio entre católicos e protestantes chegar ao auge na noite de 24 de agosto de 1572 que ficou marcada na história como a noite do Massacre de São Bartolomeu. Para vingar-se de Gaspar I de Coligny (1470-1522), membro do Conselho Privado e líder huguenote - designação pejorativa dada pelos franceses aos protestantes calvinistas -, que havia tentado raptá-la com seu filho Carlos IX e depois convencera este a declarar guerra à Espanha, Catarina de Médici (1519-1589) - rainha da França, filha de Lorenzo II - decidiu mandar matá-lo, junto como todos os outro chefes protestantes, deflagrando o massacre.

Com a fundação da dinastia dos Tudor, em 1485, Henrique VII (de 1485 a 1509) procurou desenvolver a marinha britânica e incentivar a exploração dos mares. Além disso, efetivamente, extinguiu o sistema feudal inglês ao proibir a formação de exércitos particulares, concentrando assim todo poder armado em suas mãos. Contudo, em 1603, Elisabeth I (nascida em 1533), filha de Henrique VIII, a última dos Tudor, morre sem deixar herdeiros. Jaime I (1566-1625), seu primo na dinastia Stuart assume o trono e implanta o absolutismo monárquico no Reino Unido. Neste mesmo ano, Hobbes ingressa com 14 anos de idade no Magdalen Hall, em Oxford, já com uma sólida base de conhecimento do latim e grego que lhe fora moldada pelos ensinamentos de Robert Latimer, seu preceptor.

Hobbes nasceu, na aldeia de Westport, próximo a Malmesbury, em Wiltshire, na Inglaterra, no dia 05 de abril de 1588, ano em que o corsário e almirante inglês Sir Francis Drake (1542-1596) derrotou a chamada Invencível Armada espanhola. Segundo consta, Hobbes se divertia em dizer que sua mãe havia "entrado em trabalho de parto ao ouvir rumores da aproximação da Invencível Armada: 'de modo que o medo e eu nascemos gêmeos'" (1).

A família de Hobbes era chefiada por um clérigo semiletrado e empobrecido. Por causa disso, sua educação esteve sob a responsabilidade do tio que tinha posição econômica comfortável. Aos 20 anos, depois de concluir o bacharelado, a direção do colégio o indicou para ser preceptor de William Cavendish (1592-1676), monarquista e literato que se tornou barão de Hardwick e primeiro conde de Devonshire. Foi o início de uma amizade duradoura que garantiu proteção a Hobbes nos piores momentos de sua longa vida. Esse trabalho permitiu que ele se livrasse da pobreza iminente. Como secretário, conselheiro geral e preceptor dos Cavendish, Hobbes teve a oportunidade de viajar ao continente, visitando Itália, Suíça e França, principalmente. Assim, foi possível progredir nos estudos de literatura estrangeira e manter contato direto ou indireto com personalidades e obras das mais influentes do mundo intelectual de sua época. Na Itália, visitou Galileu e conheceu o pensamento de Maquiavel. Em Genebra, Suíça, ficou impressionado com o método geométrico utilizado por Euclides (III a.C) em Elementos de Geometria. Padre Marin Mersenne (1588-1648), Pierre Gassendi (1592-1655) e René Descartes (1596-1650), entre outros, foram seus convivas, na França. Na própria Inglaterra, entre 1621 e 1626, foi secretário de Francis Bacon, que o autorizou a traduzir para o inglês seus textos em latim.

O reinado de Jaime I estendeu-se até 1625, período em que os impostos altos derrubaram o apoio dos comerciantes londrinos e a tentativa de unificar as leis, somada à padronização do ritual litúrgico, forçou a migração de centenas de puritanos para América. Ademais, a cassação de parlamentares e a dissolução do Parlamento semeou a ira que, durante a Revolução Puritana que se iniciada em 1640, decapitaria seu filho, Carlos I (1600-1649).

Enquanto isso, o continente experimentara na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), entre Alemanha, Espanha, França, Holanda e Suécia um redesenho das fronteiras na Europa central, a fim de acomodar as diversas seitas religiosas. Na Inglaterra, a Revolução Puritana de 1640, liderada por Oliver Cromwell (1599-1658), foi a resposta dos protestantes contra a crescente perda de liberdades civis e de culto promovida pelo regime centralizador da monarquia absoluta. Hobbes, temerosamente, colocou-se ao lado do rei, em 1642. Quando o Parlamento inglês forma um exército para combater Carlos I, é deflagrada a guerra civil que avança até a derrubada de seu regime. Não obstante, publica uma edição limitada de De Cive (1642), em latim, defendendo abertamente a idéia de concentração do poder absoluto nas mãos de um soberano.

Por conseguinte, o temor real de ser atingido pela onda de violência que varre a Grã-Bretanha obriga Hobbes a se exilar na França, entre 1640 e 1651. A amizade que tem com Mersenne, Gassendi e Sorbière, seu tradutor francês, faz com que possa participar de longos debates acadêmicos com Descartes e o bispo de Derry (Inglaterra), John Bramhall, exilado como ele, em Paris. Porém, o envolvimento com as polêmicas políticas em torno do De Cive gerou desconfianças por parte de Descartes e acusações de ateísmo que quase lhe custaram o emprego de preceptor de Carlos II (1630-1685), também no exílio, como de resto toda corte inglesa. Com a publicação do Leviatã (1651), sua negação da origem divina do poder real o coloca em choque com o pensamento das aristocracias inglesa e francesa, provocando o seu banimento do convívio da corte exilada.

Paradoxalmente, suas teses de separação da religião do Estado aproximam-no da política de Cromwell, que como Lord Protetor, assumira com mão de ferro o governo republicano implantado depois de deposto Carlos I. Em 1652, Hobbes volta à Inglaterra em definitivo, para trabalhar com relativa tranquilidade sob a proteção de seu primeiro discípulo, o conde Devonshire. Assim pode publicar De Corpore, em 1655, e De Homine, em 1658, ano da morte de Cromwell. Pouco depois, a Restauração da monarquia, em 1660, traz de volta Carlos II, seu ex-aluno de matemática, que sobe ao trono. Nesse ínterim, renovam-se as acusações de ateísmo e impiedade, por parte do Bispo Bramhall, e, apesar do discreto apoio inicial do rei, o Leviatã deixa de ter permissão para ser impresso. Em compensação, Lord Arlington e amigos conseguem absolvê-lo das acusações religiosas. No restante de sua longa e conturbada vida, Hobbes vê-se forçado a dedicar-se novamente à tradução de clássicos gregos, como a Ilíada e a a Odisséia, de Homero (cc. VIII a. C). Aos 91 anos, deixa a vida alegremente em Hardwick, por ter finalmente encontrado um "buraco para escapar deste mundo" (2).