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É conhecido o papel de Freud no que se refere ao abandono da hipnose em sua clínica e as conseqüências daí resultantes, em particular nos meios psicanalíticos da Europa e, alhures, nos profissionais que tinham vínculo intelectual maior com esse continente. Havia poucas exceções de estaque, tais como a de Pierre Janet, na França, e, mesmo no Império Austro-húngaro, a de alguns discípulos do próprio Freud. A repercussão foi menor na América do Norte, onde a hipnose continuou a ser objeto de séria pesquisa e uso clínico. "Importa, antes de tudo, que se reconhecia a genuinidade desses fenômenos. Concedido isto, duas lições fundamentais e inesquecíveis se tiravam do hipnotismo. Primeiro, ficava-se convicto de que surpreendentes alterações somáticas eram, apenas, o resultado de influências anímicas que, no caso, tinham sido postas em ação pelo próprio sujeito. Segundo, pelo comportamento do sujeito da experiência, depois da hipnose, tinha-se a claríssima impressão da existência de certos processos anímicos aos quais só se podia denominar de "inconscientes". O "inconsciente", aliás, já era, de há muito, conceito teórico em discussão entre os filósofos, mas aqui, nos fenômenos do hipnotismo, tornou-se algo real, tangível e objeto da experiência. Juntou-se a isto o fato de que os fenômenos hipnóticos mostraram evidente semelhança com as manifestações de certas neuroses. |
Essa genuinidade será reafirmada em 1938. Trata-se do episódio citado no tópico "Curso de Hipnoterapia - Fatos Hipnóticos" desta página. Em "Some Elementary Lessons in Psycho-Analysis", de 1938, cerca de um ano antes de morrer, a última das declarações de Freud sobre a hipnose, "a genuinidade de certos fenômenos hipnóticos como este": o que presenciara de Bernheim, em Nancy, em 1889. A experiência com um aluno universitário, de que determinado ato fosse executado pós-hipnoticamente, junto com a sugestão de amnésia da ordem recebida: o jovem abriria um guarda-chuva na sala de aula e ficaria, assim, à espera do professor que se retiraria por uns instantes, voltando logo a seguir. Ocorrido o fato, ao pé da letra, ante a interrogação do porquê daquela atitude do estudante, de guarda-chuva aberto, o moço respondeu haver tido a idéia de que o professor quisesse sair de novo e estivesse chovendo...
Freud, o psicoterapeuta.
Joseph Breuer comunicou a Sigmund Freud, no ano de 1882, a 18 de novembro, o caso de Bertha Pappenheim, conhecida de Martha Bernays, noiva de Freud, e citada como Anna O., nos Estudos sobre a Histeria, de autoria dos dois. Ambos se relacionavam, pelo menos desde 1877, tendo sido Freud ouvinte de preleções do outro. Em 1885, Freud exara o ponto de vista de que os distúrbios mentais, cuja análise não chega aos traumas infantis, não podem ser tidos como curados e estão sujeitos a recidivas. Após o estágio em Paris (outubro de 1885 a fevereiro de 1886) com Charcot, Freud abriu o consultório de prática, então denominada de tratamento de doenças nervosas, recebendo clientes enviados por Breuer. Este cuidava dos aspectos clínicos gerais e aquele se encarregava da parte dos nervos, tratada nos moldes da época. Pelo outono de 1887, desiludido com os processos em uso, Freud voltou-se para a hipnoterapia de sugestão, com o que obteve resultados freqüentes e, se não exuberantes, contudo, dignos de nota. Afastou-se da posição de Charcot cuja teoria não abrigava a possibilidade do emprego terapêutico da hipnose. Em suas notas autobiográficas, Freud se refere ao trabalho com hipnose como realmente sedutor, pois lhe dava o sentimento de vencer a própria impotência e o lisonjeava com o renome de taumaturgo (GW XIV 41 – SE XIX 17)*. Mas este brilho, na mesma época, já era embaçado pela incapacidade de hipnotizar todos os enfermos e a de não obter, com cada um, a desejada profundidade do transe. A estes malogros, foi-se somando o contraditório, cada vez mais insuportável, de negar os padecimentos do cliente pela sugestão, supostamente eliminatória dos mesmos, proibindo-os de aparecer, e ter de reconhecê-los fora dela. A 1º de maio de 1889, apresenta-se a Sra. Emmy v. N., e Freud ensaiou a primeira aplicação do método catártico de Breuer, adicionando-lhe porções mais ou menos generosas da sugestão destinada a fazer desaparecer os sintomas. Havia, nisto, a influência de Hyppolite Bernheim. Freud o visitara em 1889 em Nancy, justamente a propósito da dificuldade de obter, de modo constante e geral, da hipnose profunda do cliente. Além disto, movia-o o interesse pelas controvérsias entre a escola da Salpêtrière e a de Nancy. Era sabido que, para Charcot, a hipnose era algo exclusivamente patológico, encontradiço, de modo peculiar, na histeria, e subordinado a deficiências importantes, responsáveis pelo aparecimento daquela no sujeito. Bernheim, ao oposto, via no fenômeno hipnótico mera sugestibilidade induzida, o que poderia ser útil se empregada como instrumento terapêutico. Ele próprio, com o tempo, adotou o uso da sugestão pura e simples, sem hipnose. Foi a concepção de Bernheim a de melhor trânsito entre os estudiosos de língua alemã, e o autor começou a ser procurado por psiquiatras e neuropatologistas famosos desses países. Breuer, ao inverso de Freud, inclinava-se, preferencialmente, para Charcot, de cuja teoria colheu alguns elementos, elaborando-os e adaptando-os, embora, tanto como Freud, parecesse, por algum tempo, fascinado pelo método de Nancy. Em 1882, Freud, abertamente, aderira à psicoterapia sugestiva, pois, nesse ano, publicou um caso de cura obtida desse modo, e pronunciou uma conferência comendatória da técnica de Bernheim.
Os vaivens dos ajustes e discordâncias entre Breuer e Freud são reveladores e permitem melhor se entenda o desdobramento futuro da psicanálise. Diante do exposto, seria de prever-se que, no caso de Emmy v. N., Breuer nem sempre estivesse de acordo com a atuação de Freud. Do relato casuístico, sabe-se que, em dada ocasião, Freud se permitiu induzir o que ele achou não ser mais que uma pilhéria sugestiva à paciente. Um dos sintomas desta, às vezes manifestamente constrangedor em público, era ocasional gagueira, quando não o bloqueio completo da palavra. Freud inspirou-lhe que, daquele momento em diante, ela jamais lembraria o nome correto de um sanatório muito conhecido, e se confundiria sempre, ao tentar citá-lo, trocando, uma por outra, as terminações ...berg, ...tal, ...wald, comuns em toponímicos alemães, e uma das quais fazia parte do nome daquele nosocômio. Em compensação, libertar-se-ia das duas outras dificuldades de memória. Deveras, nos dias subseqüentes, a proposta confusão de desinências foi o único distúrbio de linguagem visível na paciente. A uma observação censora de Breuer, Freud se rendeu e anulou a paramnésia sugerida, pelo mesmo processo hipnótico com que a havia instalado. No caso, um sintoma, supostamente menos sério, substituíra, por artifício, outro mais incômodo, com eficaz alívio de uma necessidade psicopatológica incontrolada até o momento e incontornável de outro modo. Se se atribuir o devido apreço ao que, mais tarde, surgiu nas psicoterapias construídas sobre esse mesmíssimo alicerce, Freud, já nessa época, dava mostras do tino que lhe permitiria as grandes e originalíssimas descobertas que fez no campo da clínica da mente.
Os estados hipnóides.
"Era-nos quase impossível debater a condição para o surgimento dos fenômenos histéricos, sem examinarmos, com atenção, a peculiar hipótese que tenta achar a caracteristica da disposição à histeria, a saber: que na histeria, facilmente, ocorre certa dissociação temporária dos conteúdos da consciência, e que a separação de alguns deles se dá de tal forma que não participam do curso associativo desse complexo de representações. Devemos, conseqüentemente, procurar a disposição histérica no fato de que tais situações podem ocorrer espontaneamente (por causas internas), ou podem ser facilmente provocados por influências externas, em vista do que admitimos ser possível uma seqüência de participação alternada de ambos os fatores.
Chamamos esses estados de "hipnóides" e salientamos que seu conteúdo, em maior ou menor amplitude, fiquem segregados dos demais conteúdos da consciência e, assim, fiquem despojados de sua liquidação associativa (isto é, resolvê-lo, liquidá-lo, dar conta associativamente – sinonímia nossa), tal como ocorre no estado de sono ou de vigília, modelo de (dois) estados diferentes, que não estamos inclinados .... a associar um ao outro. - (Falta uma palavra, que deve significar uma abreviação do pensamento de Freud, para ele, certamente, claro. Parece correto o que a edição-padrão inglesa, da obra de Freud sugere: o autor quer significar ser conveniente se estude, primeiro, cada um dos dois estados em si mesmo).
Nas pessoas predispostas, qualquer afeto poderia dar origem a tal dissociação e a impressão concomitante a esse afeto poderia tornar-se um trauma, ainda que aquela, em si mesma, não fosse apropriada para tal. A própria impressão seria capaz de produzir o afeto. Em sua forma completamente desenvolvida, esses estados hipnóides que são associáveis entre si, formariam a "condition seconde" dos casos conhecidos. Rudimentos dessa disposição natural são reconhecíveis em toda parte, e podem, por traumas adequados, desenvolver-se, também, em pessoas, sem disposição para isso. A vida sexual se presta, especialmente, para fornecer o conteúdo (de tais traumas - palavras acrescentadas pelo editor alemão) pelo grande antagonismo que representam diante de tudo o mais que a pessoa é, e a incapacidade desta de reagir contra tais representações.
Entenda-se que a nossa terapia consiste em suspender os efeitos dessas representações que não foram ab-reagidas, permitindo que o trauma seja revivido, ou se corrija no sonambulismo, ou que, em leve hipnose, seja trazido de volta à consciência normal" (S. Freud - 1892 - Manuscrito de um projeto sobre a histeria, assinalado, apenas, como "III". – GW XVII 17/18 - SE I 149/50)
Da mesma época: "Toda impressão que cause, ao sistema nervoso, dificuldade para ser resolvida pelo trabalho associativo do pensamento ou uma reação motora, se transforma em trauma" (Subsídios para Estudos sobre a Histeria - GW XVII 13 - SE I 154).
Breuer e Freud divergiam no respeitante à concepção de tais estados:
"A primeira diferença entre mim e Breuer veio à luz sobre uma questão referente aos mecanismos psíquicos mais íntimos da histeria. Ele privilegiava uma teoria mais fisiológica, por assim dizer, que explicaria a dissociação anímica da histeria pela não-comunicação dos diferentes estados anímicos entre si (ou, como diziamos então, "estados de consciência") e criou, pois, a teoria dos "estados hipnóides", cujos produtos inundavam a "consciência de vigília" como corpos estranhos não assimilados. Eu me propus a questão de maneira menos científica. Preferi considerar tudo isso, mais como tendências ou propensões análogas aos do comum dia-a-dia, e considerei a dissociação psíquica como sendo o resultado de um processo de "repulsa" que eu, na época, denominei "defesa" e, mais tarde, "recalcamento". Por breve tempo, fiz a tentativa de deixar os dois mecanismos existirem lado a lado, mas como a experiência continuou a mostrar-me sempre uma só e mesma coisa, minha teoria da defesa se sobrepôs à dos estados hipnóides (S. Freud, 1914 - Para a História do Movimento Psicanalítico - GW X 48 - SE XIV 11).
Note-se a perspicácia de Freud ao discordar de Breuer, no respeitante aos estados hipnóides. O que Milton Erickson veio a denominar, mais tarde, o transe do dia-a-dia, está contido no pensamento de Freud em sua divergência com o colega vienense. É-nos lícito inquirir: haverá diferentes níveis de consciência, assim como há diferentes profundidades num reservatório dágua, variações de dureza de um metal conforme sua temperatura, diversidade dos estados da água enquanto ela se apresenta como vapor, líquido ou gelo? Breuer não estava totalmente destituído de razão ao chamar de hipnóides estados de consciência semelhantes aos de Anna O., em sonambulismo, e que, em seus aspectos, era o mesmo que o padre Antônio Faria (o Abbé Faria dos franceses), setenta anos antes, em Paris, chamara de sono lúcido, perfeitamente adequado para o que a cliente de Breuer manifestava. A hipótese dos estados hipnóides não era, pois, absurda. O sonambulismo, ápíce da perda do estado de consciência próprio da vigília plena, era o que Breuer tinha constantemente diante dos olhos, na terapia de Anna O. De outra parte, Freud, ao que parece, tinha razão ao ver, os estados crepusculares de consciência, desde os mais tênues até o profundo sonambulismo acompanhado de amnésia, como sendo todos, fenomenologicamente, o desdobramento contínuo de disposições naturais, inatas, de dissociar. Esta dissociação pode ser tão extensa e tão maciça que se manifeste, ao observador, como uma cisão, pelo funcionamento autônomo de uma parte da atividade psíquica do indivíduo. Perda de consciência é expressão muito ambígua. Pode haver, num extremo, a completa eliminação de registros psíquicos, como, por exemplo, pela deterioração de partes da anatomia correspondente aos mesmos (psico-cirurgia, agente traumático ou químico, etc.) - análogos, nos computadores, às pastilhas que se deterioram. Noutros momentos, permanecendo íntegra a estrutura anátomo-fisiológica do indivíduo, há, na verdade, mudança do estado de consciência. No caso, o que se torna inconsciente (lembremos Pierre Janet que preferia chamar de sub-consciente), o é de maneira temporária: o conteúdo, no momento, não é acessível de modo natural ou espontâneo.
As considerações acima mostram as dificuldades que se encontram para a abordagerm clara dos processos psicológicos normais, numa pessoa, mas ainda não suficientemente desenvolvidos na evolução natural de cada um, e os que revelam como patológicos por sua deterioração íntima.
PSICANÁLISE e HIPNOSE – Conceitos introdutórios.
1 - "Toda impressão que cause, ao sistema nervoso, dificuldade para ser resolvida elo trabalho associativo do pensamento, ou uma reação motora, se transforma em trauma" (S. Freud - 1892 - Subsídios para Estudos sobre a Histeria - GW XVII 13 - SE I 154 ).
2 - "... a nossa terapia consiste em suspender os efeitos dessas representações que não foram ab-reagidas, permitindo que o trauma seja revivido, ou se corrija no sonambulismo, ou que, em leve hipnose, seja trazido de volta à consciência normal" (S. Freud - 1892 - Manuscrito de um projeto sobre a histeria, assinalado, apenas, como "III". - GW XVII 17/18 - SE I 149/50 - Destaques nossos).
3 - "Breuer (...) criou... a teoria dos "estados hipnóides", cujos produtos inundavam a "consciência de vigília" como corpos estranhos não assimilados. Eu me propus a questão de maneira menos científica. Preferi considerar tudo isso, mais como tendências ou propensões análogas aos do comum dia-a-dia, ... (...) (S. Freud, 1914 - Para a História do Movimento Psicanalítico - GW X 48 - SE XIV 11) . Acrescido de que a restrição "de maneira menos científica" é mais vizinha da proverbial cortesia vienenese do que da realidade dos fatos).
4 - "... mesmo antes do tempo da psicanálise, os experimentos hipnóticos, particularmente a sugestão pós-hipnótica, tinham demonstrado, tangivelmente, o modo de atuar efetivo do inconsciente anímico" (S. Freud -1915 - O inconsciente - GW X 267- SE XIV 168/9).
5 - "Importa, antes de tudo, que se reconhecia a genuinidade desses fenômenos. (...) "O "inconsciente", ..., já era, de há muito, conceito teórico em discussão entre os filósofos, mas aqui, nos fenômenos do hipnotismo, tornou-se algo real, tangível e objeto da experiência. Juntou-se a isto, o fato de que os fenômenos hipnóticos mostraram evidente semelhança com as manifestações de certas neuroses. Não se pode sobrestimar, facilmente, a importância do hipnotismo para a história da origem da psicanálise". (S. Freud - [1923] Breve Ementa de Psicanálise - GW XIII 407/08 - SE XIX 192 -).
6 -"A influência hipnótica parecia ser um excelente meio para os nossos fins; é sabido, porém, porque tivemos de renunciar a ela. Até hoje, ainda não se achou um sucedâneo para a hipnose" (S. Freud - A análise finita e a análise infinita (1937 - GW XVI 74 – SE XXIII 230). Em 1938, antes de sua morte, em 1939, acerca de um episódio que presenciara de Bernheim e um aluno, em Nancy, em 1889, Freud declara: "a genuinidade de certos fenômenos hipnóticos como este" - (1938 - Some Elementary Lessons in Psycho-Analysis -GW XVII 46 - SE XXIII 285 ).
Repise-se, das linhas acima: a associação livre feita "sucedâneo da hipnose enquanto veículo de afloramento de conteúdos inconscientes", e "até hoje, ainda não se achou um sucedâneo para a hipnose". A repetição vale para a salvaguarda merecida do gênio de Freud, e o ânimo de quem deseja desnudar o texto e o espírito de sua obra no que continua atual. Ressalte-se, ainda, a afirmativa peremptória do mestre: a genuinidade de certos fenômenos hipnóticos.
A hipnose atual prossegue os estudos a partir de onde o mestre do inconsciente os deixou. O abandono da hipnose por Freud, em sua clínica pessoal, não eliminou asvirtudes da hipnose. "O "inconsciente", (...) nos fenômenos do hipnotismo, tornou-se algo real, tangível e objeto da experiência". A psicanálise deu contribuição ímpar a que se tornasse ainda mais verdadeira essa realidade. Os termos real e tangível empregados por Freud, podem ser mais explicitados. Real (leibhaft - usado por Freud) significa o próprio, em pessoa (referindo-se a uma identidade evidente e sem dúvida). Otangível (handgreiflich) expressa, no sentido etimológico germânico, o que pode ser apalpado, agarrável, segurado com a mão. Tem a mesma profundidade perceptiva daquilo que é "visto" pelo tato, como quem, além de enxergar com os olhos, quer "ver", sentir pelo tato,o que lhe está à frente, tocando-o ou tomando-o na mão. Conhecemos, todos, o valor desse ato natural do ser humano, desde a tenra infância, e que nunca se aposenta.
Tornar algo inconsciente, enquanto processo que subtrai da consciência imediata alguma representação, pode ser objeto de ato experimental, mediante sugestão induzida, que desencadeie tal efeito. Freud apreendeu, assim, o que necessitava para aprofundar o estudo da psicologia humana, e fê-lo, sobretudo, na clínica. O grau de aceitação por parte do cliente, por disposição pessoal (que desconhecemos), pode ser tão rápido que baste, para alguns, ver o hipnotizador ou ouvir-lhe a voz, para entrar em transe. Uma menina de 9 anos disse-me: "É só eu olhar para o seu rosto e eu já fico com sono". O caso clínico "Teodoro" teve indução hipnótica informal imediata. Outros são refratários a ponto de haver enorme consumo de tempo sem qualquer resultado aparente.
Há, também, aspectos idiossincráticos. No meu tempo de estreante na prática da hipnose, um de meus alunos, de vinte e pouco anos, aceitou minha proposta de experimentar se ele era capaz de entrar em hipnose. Em sessões sucessivas, com espaço de alguns dias entre uma e outra, pela quadragésima hora, percebi que o jovem entrara em sonambulismo. Estávamos sentados em cadeiras comuns, frente a frente, com uma mesinha de permeio. Escrevi uma frase. Fiz do bilhetinho uma bolinha que segurei entre o polegar e o indicador da mão direita, apoiando o cotovelo sobre a mesa. Meu antebraço estava levantado de tal maneira que minha mão ficasse bem à altura dos olhos do aluno. Disse-lhe então que, quando eu lhe pedisse para abrir os olhos, me perguntasse que horas eram, e esquecesse o meu comando. Decorrido o fato, segundo o planejado, o rapaz, que tinha relógio de pulso, moveu um pouco o braço correspondente, ao despertar e, de imediato, interrogou: "Que horas são?" - Respondi-lhe: "Pegue esta bolinha de papel que estou segurando, abra e leia". Assim o fez. Eu escrevera: "Ao abrir os olhos, pergunte-me que horas são". Ele aceitou o fato de que se hipnotizara. Logo a seguir, induzi, com facilidade, um segundo transe e perguntei: "Está disposto a fazer o que eu mandar"? - Meu intelocutor abriu, instantaneamente, os olhos e respondeu forte : "NÃO!" - Desculpou-se a seguir, surpreso: "Engraçado, eu estava disposto a fazer o que o senhor mandasse...". Onde estava, na mente, a disposição de cumprir o que eu dissesse, e onde estava a negativa proferida? Noutras palavras, qual a origem e a finalidade desse contraditório?
A técnica, o conhecimento prático sobre algo, e a teoria, o conhecimento intelectual desse algo, se fecundam reciprocamente, ainda que haja descompassos entre ambos. Foi importantíssimo, na confissão do próprio Freud, ter praticado o hipnotismo e que o modo como o aplicava foi o que determinou a mudança de técnica: da sugestão impositiva à liberdade da associação de idéias. Mas o cunho que a prática prolongada de um procedimento imprime em alguém nunca se elimina ao ponto de que o sujeito se sinta como se nunca tivesse feito o que fez. Quem sempre andou nu, jamais será o mesmo quando, depois de usar vestuário, passe, de novo, a andar desnudado. Não se tem conhecimento de quais foram "alguns experimentos" sobre a hipnose que Freud, como asseverou, fez depois de abandoná-la no cotidiano. Visto que a hipnose o fizera "sentir-se taumaturgo", jamais poderá ter perdido certo modo dialogal de contato, com alguns traços específicos da prática de outrora. Algo disto foi transferido para o comportamento terapêutico psicanalítico, incluso nas atitudes normais de atendimento clínico, sem contradições inarmonizáveis, ao passar da sugestão imperativa para a livre associação de idéias. A técnica hipnótica usada por Freud foi importante para a criação da técnica psicanalítica. A experiência colhida de uma favoreceu a concepção da outra. Algo de paralelo ao papel que, no plano inelectual, o "Projeto de uma Psicologia Científica" (na verdade, um manuscrito sem nome, enviado a Robert Fliess) representou o começo para o desdobramento da psicanálise. Os pensamentos expostos nesse texto foram o germe de não poucos conceitos psicanalíticos elaborados por Freud a seguir, os quais se tornaram mais compreensíveis após a descoberta daquele texto. O que se faz mais tangível, também se torna mais apto ao manuseio e ao remanejamento. O artesão experiente, hábil, pode executar a remodelagem do objeto que tenha às mãos, para restaurar-lhe as funções de maneira adequada ao presente. A revivência do trauma, no sonambulismo originado pelo transe hipnótico espontâneo ou induzido, é o que Breuer praticava. Merece destaque a declaração de Freud de que leve hipnose também era capaz operar a revivência do trauma, em condições de fazer seu conteúdo reintegrar-se à consciência normal. É, em si, a manifesta antecipação do estado de consciência que, de maneira fácil, inevitável e em intensidade vária, se apresenta na cômoda e relaxada postura em decúbito dorsal, no divã do analista. Psicoterapeutas que tenham tido convívio com a hipnose, há muito se deram conta desse estado mental que, embora não freqüentemente, pode chegar ao sonambulismo espontâneo. A atenção flutuante, recomendada ao profissional da psicanálise, é, também, uma postura descontraída. Entre o estado de consciência da associação livre de idéias e o do transe profundo, há, quer da parte do cliente e do terapeuta, variável nitidez de percepção da realidade psicológica do sujeito, do modo como seus conteúdos se apresentam, e daquilo que ocorrre entre as duas pessoas.
Entre hipnose e psicanálise, é preciosa a citação: "Sustento que muitas das teorias da hipnose permanecem apenas como isto: teorias da hipnose, distantes de qualquer perspectiva geral do funcionamento da personalidade humana. Nossos colegas da física, química ou biologia, achariam este modo "staccato" de abordagem do conhecimento, limitador ao passar do tempo. É um paradoxo histórico que a psicanálise fique à parte desta tendência. Embora, de maneira muito tangível, a metapsicologia psicanalítica tenha sido originalmente desenvolvida para explicar os fenômenos hipnóticos, Freud desfez, finalmente, os laços entre a hipnose e o corpo da teoria e técnica psicanalíticas. Talvez, devido a isto, a psicanálise agora tenha a oportunidade peculiar de, empiricamente, reexaminar e explicar os fenômenos hipnóticos no contexto de um modelo amplo e coerente da experiência e do comportamento humanos. Meu ponto de vista não é que todos adotemos a psicanálise, mas que permitamos que nossas teorias gerais da personalidade e do desenvolvimento esclareçam, mais completamente, o nosso conhecimento sobre o que a hipnose é e o que ela não é. Colocando de outra forma, estou fazendo um apelo para se entender a hipnose a partir de uma coerente teoria da personalidade, do desenvolvimento ou da psicopatologia, mais do que de proposições estreitamente definidas, que apresentam a hipnose como algo à parte da experiência humana" (Michael R. Nash - Why scientific hypnosis needs psychoanalysis or something like it -University of Tennessee, Knoxville - The International Journal of Clinical and Experimental Hypnosis, Vol. XLV, no. 3, Julho 1997 - 291/300).
(*) GW XIV 41 = Sigmund Freud - Gesammelte Werke - Obras Completas, em alemão. SE XIX 17 = The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud - Edição-Padrão inglesa. - As citações textuais de Freud, mais ou menos extensas, ao longo desta página, são fiéis à edição alemã.)
Fonte: http://www.malomar.com.br/