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Racionalidade Humana Por Antônio Rogério da Silva De todos os aspectos envolvidos no estudo da ciência cognitiva, o mais central é aquele que diz respeito à racionalidade humana. Os filósofos iluministas, bem como os clássicos gregos, davam grande importância a princípios matemáticos e lógicos, como características definidoras de uma razão bem formada. Ser racional correspondia a ter uma habilidade para seguir regras lógicas e precisas, de modo consistente e coerente. A dificuldade que muitas pessoas exibem quando enfrentam as exigências formais sempre foi atribuída a uma ignorância, cujo melhor remédio estava no ensino e exercício constante da disciplina lógica. Fatores relacionados com o conteúdo do raciocínio, tais como contexto vivido, familiaridade com o assunto, sentimentos e emoções, eram deixados de lado do processo cognitivo, a fim de proporcionar uma generalização capaz de apontar a verdade universal das inferências lógicas. Entretanto, muitos problemas cotidianos, talvez a maioria, são resolvidos por grande parte da população, incluindo os lógicos e matemáticos, sem o recurso de uma formulação rígida, por vezes incompreensível da lógica. Por mais paradoxais que sejam as escolhas humanas, elas procedem de uma cadeia de pensamentos que não é necessariamente aquela imaginada pelos especialistas em regras. Nem por isso, essas escolhas deixam de apresentar uma certa racionalidade, cuja eficácia é suficiente para manter a espécie, até o momento, bem sucedida na sua luta pela sobrevivência. |
Os primeiros computadores seguiam todas instruções e normas rígidas que os programadores estabeleciam e assim podiam resolver facilmente os problemas lógicos propostos. Todavia, a eficiência demonstrada pelas máquinas não se repetia em problemas do cotidiano que crianças e adolescentes enfrentam todos os dias com um pouco de sagacidade. O "ilogismo" do raciocínio humano parece ser a resposta mais prática que a seleção natural encontrou para que a espécie enfrentasse os obstáculos que o acaso interpõe ao longo da existência do indivíduo.
Lógica X Intuição
Nas últimas décadas, alguns psicólogos decidiram examinar empiricamente aquilo que os filósofos cognitivistas não tinham coragem de investigar. Para provar as dificuldades de proceder à formalização lógica, testes foram criados para avaliar a perspicácia dos indivíduos em algumas tarefas inferenciais. A mais notável dessas provas foi elaborada por Peter Cathcart Wason e passou a ser conhecida como a "seleção de Wason". Tal teste visa avaliar a capacidade de um indivíduo em verificar a veracidade de uma implicação do tipo "se A, então B". Pela tabela de verdade, uma implicação é falsificável sempre que seu conseqüente for falso e seu antecedente verdadeiro. Assim, para falsificar a condicional "se uma carta tem um A escrito em um lado, então ela têm um número primo do outro", quatro cartas são mostradas a uma pessoa contendo nas faces expostas as letras A e K e os números 4 e 7. Apenas duas cartas são relevantes para avaliar a função de verdade da sentença. Pede-se então que a pessoa vire as duas que considera mais importantes para uma possível prova.
Se os seres humanos tivessem uma mente "lógica", deveriam todos selecionar as cartas A e 4, pois se A tiver um número primo em suas costas, o antecedente será verdadeiro; mas se o número 4 tiver um A no verso, o conseqüente será falso, permitindo afirmar que o enunciado também é falso. Abrir as cartas K e 7 em nada ajudará a solucionar a questão, uma vez que nada está sendo afirmado sobre K, enquanto o número 7 não pode falsificar o enunciado, já que não se diz que todo número primo contenha um A em seu verso. Por mais correto e evidente que seja esse raciocínio, a maioria das pessoas -mais de 90%- pesquisadas pelos psicólogos britânicos Peter Wason e Philip Nicholas Johnson-Laird (1936) erraram esse teste.
Contudo, quando as letras e números são substituídos por objetos cotidianos, a média de acerto aumenta para 80%, como no caso de "se a diretora vai ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), então ela usa o carro". Ao serem confrontados com as cartas IFCS, CFCH, ônibus e carro, as pessoas tendem a escolher corretamente as cartas IFCS e ônibus, pois se IFCS for verdadeiro -isto é contenha carro escrito do outro lado- e ônibus for falsa -contenha IFCS-, então a frase será falsa. Isso significa que o envolvimento com as circunstâncias do problema proporciona a escolha correta das opções feitas pelos participantes do teste. Caso não se soubesse o que é IFCS, ou que a diretora não vai de carro à cidade, a resposta fica tão difícil quanto na experiência com as variáveis alfanuméricas. As pessoas normalmente não constroem tabelas de verdade na mente e sequer usam regras formais de inferência. Sua lógica vai além da formalização lingüística e do silogismo clássico(1). Eventualmente, cada um utiliza esquemas de raciocínio pragmáticos e não o cálculo proposicional.
Com base nesses resultados e em outros experimentos, Johnson-Laird propôs a teoria dos modelos mentais para explicar a aparente falta de lógica do senso comum. Segundo essa teoria, a tarefa de seleção é regida por modelos de regras que as pessoas formaram a partir da proposição inicial, isto é, elas tinham um modelo para o antecedente e outro para o conseqüente que foram induzidos pelo enunciado apresentado.
Aplicada aos silogismos aristotélicos que utilizam quantificadores todo e algum, a teoria dos modelos prediz que as pessoas classificam os objetos relacionados com aquelas características explicitadas nos três termos do argumento -maior, médio e menor-, numa primeira etapa. Em seguida, são formados modelos para os termos médio e menor. E, finalmente, os objetos que preenchem apenas o modelo do termo menor. A partir daí, as pessoas podem resolver adequadamente as questões sobre as premissas, consultando diretamente a lista de modelos classificados hierarquicamente. A observação direta da lista de classes oferece a solução correta, sem necessidade de regras formais de inferência lógica - como o modus ponens (se p e p®q, então q) ou modus tollens (se ¬q e p®q, então ¬p) . Os sinais particulares de cada espécime (token) permite o agrupamento de indivíduos em tipos (types) separados pelo conjunto de exemplares que constituem os modelos mentais. Quanto maior for o número de modelos separados construídos, maiores serão as dificuldades de raciociná-los com segurança, o que ocorre quando o número de premissas é maior do que dois.
Os modelos mentais são formados seguindo um programa que parte da primeira premissa e vai gradativamente adicionando novas informações da segunda premissa, marcando as diferenças relevantes, para, no final, concluir pela existência ou não de uma relação entre os termos da conclusão e os dos modelos das premissas. Sem recorrer às leis da lógica, descobre-se que uma inferência é válida quando não for possível interpretar as premissas de modo contrário à conclusão. A versatilidade dos modelos mentais permite que eles agrupem os conteúdos em uma forma adequada para explicar, prever ou confrontar a maneira como as pessoas chegam a uma solução. Dessa forma, Johnson-Laird mostrou que os seres humanos não raciocinam como a lógica clássica presume e nem por isso deixam de ser racionais. Com a observação dos conteúdos particulares, de informações familiares e pela construção de modelos mentais flexíveis, o conhecimento do mundo real pode ser atingido(2).
Probabilidades
Se a mente humana não é lógica talvez, ao menos, ela use recursos estatísticos para tornar mais bem sucedida sua existência numa natureza tão complexa. Testes realizados pelos israelenses Amos Tversky (1937-1996) e Daniel Kahneman (1934) revelaram algumas idiossincrasias das pessoas em suas escolhas "racionais". Em uma série de experiências que visavam observar as noções econômicas de probabilidade e relação custo/benefício, eles perceberam que determinadas seqüências do jogo cara e coroa eram preferidas a outras, quando na verdade as chances de ambas ocorrerem eram idênticas. Além disso, eventos semelhantes com o mesmo resultado tinham interpretações diferentes segundo o ponto de vista adotado, seja pela manutenção de características representativas já formadas, seja pelos hábitos arraigados na sociedade ou relevância subjetiva daquilo que está em jogo.
O economista norte-americano Thomas C. Schelling chegou a resultados semelhantes ao da dupla de psicólogos sociais israelenses, quando investigou a influência de fatores culturais em jogos cooperativos sem comunicação. No jogo de cara e coroa, 36 em cada 42 indivíduos escolhem "cara". Numa seqüência de números que incluam aqueles com significados tradicionais, como o 7, o 10, o 100 e o 13, estes serão sempre os preferidos a despeito dos outros(3). Como notaram Tversky e Kahneman, as pessoas preferem assumir o prejuízo da perda do dinheiro, para aquisição de um bem, desembolsando novamente a mesma quantia perdida, do que ter de pagar de novo por um bem extraviado; numa clara recusa a ter custo dobrado pela posse de algo que já lhes pertenceu, enquanto aceitam gastar o dobro por aquilo que ainda não têm. Peça alguém para avaliar as chances de um estudante inteligente de jornalismo, que participa de todas manifestações políticas do diretório acadêmico, vir a ser um professor de filosofia ou um professor de filosofia "petista", e esse alguém dirá que o segundo caso, específico, tem mais probabilidade de acontecer do que o primeiro caso, geral.
Essas estranhas predileções psicológicas são muito bem exploradas pela imprensa e publicidade que preferem dar destaques a acontecimentos locais, mais próximos dos consumidores de jornais do que aos eventos internacionais. Por exemplo, o choro de Xuxa diante da vaia do público chileno mereceu manchete de primeira página, enquanto o sofrimento causado pela enchente na Austrália teve apenas uma nota na estreita coluna internacional da página 16 do primeiro caderno. Tversky e Kahneman concluíram que as pessoas, em seu dia-a-dia, não utilizam os princípios estatísticos e as regras de dedução que os matemáticos, lógicos e economistas postularam em suas teorias. De fato, a espécie humana possui uma noção de probabilidade intuitiva diferente daquela que os cientistas supõem ser a "teoria da escolha racional". Para se chegar a um resultado equivalente entre as hipóteses instintivas e teóricas, é preciso que a informação seja apresentada num formato compatível. Só assim, os seres humanos conseguem trabalhar os cálculos probabilísticos, incluindo as circunstâncias, o contexto cultural, experiências vividas e envolvimento afetivo.
Na prática, os humanos procuram reduzir o esforço de cálculo, prestando atenção aos aspectos relevantes de um problema. De tal sorte que nos casos de acidente, se a testemunha tem 80% de chances de dizer com certeza qual foi o responsável pela ocorrência, ela não recorrerá ao teorema de Bayes para conhecer a probabilidade exata dos envolvidos terem ou não ocasionado o fato, incluindo estatísticas desnecessárias(4). Basta tão somente saber se ela tem a probabilidade de 0,8 de estar correta. Jonathan Cohen (1952), da universidade Oxford, afirmou que os pesquisadores se atêm muito aos detalhes estatísticos, deixando de lado aquilo que é relevante para sobrevivência na vida cotidiana(5).
O Papel das Emoções
Por muito tempo a tradição filosófica racionalista considerou as emoções e os sentimentos elementos perturbadores e rivais da razão. Em 1994, o neurologista português Antônio Damásio (1945) lançou o livro O Erro de Descartes, onde desenvolveu a hipótese segundo a qual as emoções exercem um papel fundamental nas tomadas de decisões. Ao examinar casos históricos de lesões no lobo frontal esquerdo e alguns de seus pacientes com traumas cerebrais mais localizados, Damásio constatou que a perda de habilidade de sentir emoções prejudicou profundamente a vida dessas pessoas.
Embora elas apresentassem um desempenho normal em descrições verbais e nos cálculos matemáticos, não conseguiam sequer decidir em que restaurante deveriam almoçar. Outra seqüela observada em seu comportamento foi o fato delas terem ser tornado irresponsáveis no trato social, descumprindo acordos ou desconsiderando os interesses dos outros. Para Damásio, tais deficiências só poderiam ser atribuídas à ausência do controle afetivo e emocional, que ficara a cargo das áreas cerebrais específicas atingidas pelas lesões. Nesse sentido, as emoções exercem um papel essencial e produtivo no raciocínio humano vinculado ao processo deliberativo.
A hipótese dos marcadores-somáticos, defendida por Damásio, sugere que o bom funcionamento das regiões pré-frontais do cérebro, responsáveis pela ativação das emoções e sentimentos, permite uma maior atenção para com os resultados negativos de uma ação, a fim de rejeitar qualquer preferência pela estratégia mais danosa e favorecer outras alternativas. Um marcador-somático atuaria como um sinal automático que protege o indivíduo de prejuízos futuros. Só depois de recusadas essas opções negativas é que a análise de custo e benefício pode trabalhar sobre um número menor de alternativas restantes, deduzindo daí qual a melhor. Desse modo, os marcadores-somáticos, compostos por emoções e sentimentos, diminuem o número de opções disponíveis, aumentando o grau de precisão e eficiência da escolha racional(6).
A descoberta da influência decisiva das emoções nas tarefas deliberativas dificultou mais ainda o trabalho dos pesquisadores que adotam a teoria computacional como modelo explicativo do funcionamento da mente. As emoções podem prejudicar ou facilitar a aprendizagem que atualmente é um dos maiores desafios enfrentados pela inteligência artificial. A inclusão das emoções e dos sentimentos numa teoria computacional ampliada exige a formulação de conceitos precisos de felicidade, medo, ou melancolia. Os filósofos e lógicos da IA tendem a considerar essas questões periféricas. O fato das pessoas não atuarem conforme a lógica formal ou um padrão clássico de racionalidade não os impede de desenvolver máquinas baseadas em modelos inferenciais rígidos que todo sistema inteligente deve seguir. Por conseguinte, não é a lógica de precisa ser mudada, mas sim os seres humanos(7).
A mente humana, contudo, não foi criada para atender aos caprichos dos cientistas, mas para enfrentar os empecilhos impostos pelo meio ambiente e superar a competição com outros animais e plantas pela sobrevivência. Suas representações são constituídas de várias maneiras, seja pela formação de modelos mentais, teorias intuitivas, envolvimento com o mundo, interesses pessoais e pela relação entre emoção e razão. Isso tudo para produzir respostas sobre a natureza dos objetos, sua movimentação, utilidade, raciocínio e risco para a espécie. Nesse sentido, caso se queira uma compreensão exata do processo mental e do comportamento humano, são esses fatores, entre outros tantos, que devem ser considerados. Doutra forma, o enfoque recai sobre outros temas estranhos à cognição humana, não obstante o sucesso da engenharia mecânica ou eletrônica.
_Racionalidade Humana;
_Texto: GARDNER , H. A Nova Ciência da Mente, III, cap. 4, pp. 379-399.
Referência Bibliográfica
DAMÁSIO, A. R. O Erro de Descartes; trad. Dora Vicente e Georgina Segurado. - São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
GARDNER, H. A Nova Ciência da Mente; trad. Cláudia M. Caon. - São Paulo: Edusp, 1995.
PINKER, S. Como a Mente Funciona; trad. Laura T. Motta. - São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
RAPOPORT, A. Lutas, Jogos e Debates;trad. Sérgio Duarte. - Brasília: UnB, 1980.
THAGARD, P. Mente; trad. Mª Rita Hofmeister. - Porto Alegre, 1998.
Notas
1. Veja GARDNER, H. A Nova Ciência da Mente, III, cap. 4, pp. 380-382.
2. Veja GARDNER, H. Op. Cit., idem, pp. 382-389.
3. Veja RAPOPORT, A. Lutas, Jogos e Debates, part. II, cap. XIII, pp. 164-165.
4. O teorema que permite o cálculo exato da probabilidade de uma hipótese foi criado pelo matemático inglês Thomas Bayes (1702-1761), sendo publicado num ensaio póstumo de 1763. A idéia era determinar a probabilidade das causas, antes da observação de um evento qualquer. Pelo teorema de Bayes, a probabilidade (P) de uma hipótese (h) dividida por sua evidência (e) é igual à multiplicação da probabilidade da hipótese pela probabilidade da evidência, dividida pela hipótese, sendo tudo dividido pela probabilidade da evidência, ou P(h/e) = [P(h) . P(e/h)] : P(e).
5. Veja GARDNER, H. Idem, ibdem, pp. 390-397.
6. Veja DAMÁSIO, A.R. O Erro de Descartes, part. II, cap. 8, p. 205.
Veja THAGARD, P. Mente, part. I, cap. 2, pp. 31-45.