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Inteligência Artificial e Filosofia da Mente

Por Sara Bizarro

A Filosofia da Mente contemporânea tem-se desenvolvido mantendo uma relação estreita com os avanços da Inteligência Artificial. Uma das questões principias que tem sido tratada pela Filosofia da Mente é a de saber se os estados cognitivos dos homens podem ser duplicados por máquinas (computadores num sentido lato). Existem duas posições comuns em relação a esta questão. Uma posição fraca segundo a qual os estados cognitivos humanos podem ser apenas simulados por computadores e uma posição forte segundo a qual os estados cognitivos humanos podem ser replicados por computadores. Segundo a tese fraca os computadores apenas simulam os estados cognitivos humanos quando perante o mesmo input produzem o mesmo output. Segundo a tese forte os computadores podem replicar as relações causais internas presentes na cognição humana.

Computacionalismo e Conexionismo

Entre aqueles que defendem a tese forte existem duas correntes principais: o computacionalismo clássico e os conexionismo. Segundo computacionalismo clássico os sistemas cognitivos são máquinas que processam representações simbólicas através de um processador central (este é o tipo de sistema usado até hoje pelos computadores correntes). Segundo o conexionismo os sistemas cognitivos consistem em redes neuronais constituídas por nódulos que se relacionam entre si criando padrões mais ou menos estáveis. O computacionalismo clássico usa como modelo a estrutura sintáctica da linguagem. O conexionismo usa como modelo as estruturas neuronais do cérebro. O computacionalismo clássico precede historicamente o conexionismo.

O Teste de Turing

Turing propôs um teste através do qual poderíamos decidir se os estados cognitivos humanos são manipulação de símbolos. O teste proposto por Turing consistia em levar a cabo uma experiência com duas pessoas e um computador. Nesta experiência uma pessoa isolada faz uma série de perguntas que são respondidas pelo computador e pela outra pessoa. O computador passa o teste se o indivíduo que faz as perguntas não conseguir descobrir qual dos interlocutores é a máquina e qual é humano. Turing previa que os computadores estariam brevemente aptos a passar este teste (o teste é proposto por Turing em "Computing Machinery and Inteligence", Mind, 1950).

O Teste de Turing foi tradicionalmente considerado como um argumento a favor do computacionalismo clássico. A ideia era a de que se um computador passasse o teste de Turing então estaria provado que os estados cognitivos humanos podem ser replicados pelos computadores.

O Quarto Chinês

Em 1980 Searle propôs outro teste conhecido como o argumento do Quarto Chinês. O argumento consiste numa experiência de pensamento na qual imaginamos um sujeito que apenas fala inglês fechado num quarto com um manual sofisticado que relaciona uns caracteres chineses com outros caracteres chineses. O individuo pratica a manipulação destes símbolos, seguindo as regras propostas no manual. Passado algum tempo ele é capaz de responder a mensagens enviadas pelos seus guardas chineses com tal eficácia que eles não conseguem descobrir se ele é ou não Chinês (Searle, "Minds, Brains and Programs", Behavioural and Brain Sciences, 1980).

O Quarto Chinês de Searle foi tradicionalmente considerado como um argumento contra o computacionalismo clássico na medida em que nesta experiência não dizemos que o indivíduo fala Chinês e sendo assim existe uma diferença essencial nos estados mentais de um indivíduo que apenas manipula símbolos e num indivíduo que fala uma língua. A experiência do Quarto Chinês de Searle põe em causa a relevância do Teste de Turing.

Avaliação do Teste de Turing e do Quarto Chinês

Para analisar a relevância do Teste de Turing e da experiência do Quarto Chinês para a Filosofia da Mente contemporânea é necessário clarificar o que estas duas experiências de pensamento realmente implicam.

É possível defender uma interpretação do Teste de Turing segundo a qual quando um computador o passa com sucesso apenas fica provado que ele pode simular os estados cognitivos humanos e não é necessário dizer que ele os pode replicar. Nesta interpretação o Teste de Turing não é suficiente para defender o computacionalismo clássico no sentido forte. Por outro lado, um defensor do computacionalismo clássico pode dizer que se a situação do Quarto Chinês ocorrer então o indivíduo sabe falar a língua.

Na avaliação destas experiências é necessário considerar as relações entre simulação e réplica. A distinção entre estas pode não ser tão clara como usualmente se considera nestes debates. De facto, quando um sistema ou um organismo exprime os mesmos outputs perante os mesmos inputs é cientificamente justificável pôr a hipótese de que existe um sistema causal interno semelhante. Quando se fazem experiências laboratoriais em qualquer ramo da ciência toma-se como garantida a credibilidade deste método: constroem-se situações artificiais e através dos resultados atingidos nessas situações defendem-se hipóteses acerca dos sistemas causais internos. A Inteligência Artificial pode ser considerada como um método laboratorial muito complexo através do qual se testam as nossas hipóteses acerca dos sistemas causais internos responsáveis pela cognição humana.

Se assim é não podemos traçar uma linha definida entre simulação e réplica, entre uma posição forte em relação à inteligência artificial e uma posição fraca. Se o Teste de Turing for cumprido com sucesso podemos dizer que o computador simula os estados mentais, mas temos de acrescentar que se os simula com eficácia a melhor explicação para esse facto é a de que os replica adequadamente. Por outro lado, se a experiência do Quarto Chinês for possível a melhor explicação para esse facto seria a de que a linguagem é apenas manipulação de símbolos e que a nossa intuição de que o indivíduo não fala Chinês está relacionada com factores extra-linguisticos.

Outra forma de avaliar a relevância destas experiências para Filosofia da Mente contemporânea é questionar a sua eficácia real. O progresso da Inteligência Artificial na segunda metade do século XX não permitiu aos computadores passarem o Teste de Turing. Por outro lado, até hoje a experiência do Quarto Chinês não foi executada e a possibilidade de levar a cabo uma experiência desse tipo com êxito pode ser questionada. O facto de que nem uma nem outra experiência foram executadas com sucesso mostra que é muito difícil simular os estados cognitivos humanos usando apenas manipulações de representações simbólicas. Assim sendo, a melhor explicação para isto é a de que os sistemas causais internos responsáveis pela cognição humana não são semelhantes a estados computacionais, não são apenas manipulações simbólicas.

Uma das explicações tradicionalmente apresentadas para dar conta da dificuldade de simulação dos estados cognitivos comuns é a de que na cognição comum existe um conhecimento implícito vastíssimo que se manifesta numa série de regras de senso comum. A programação destas regras num computador serial é difícil e o falhanço do Teste de Turing é atribuído a esta dificuldade (também conhecida por frame problem). Outra limitação comum atribuída aos computadores tradicionais é a de que eles não são capazes de aprendizagem. Esta limitação também pode estar na origem do insucesso do Teste de Turing.

Conexionismo

O conexionismo tem como principal vantagem o facto de que as suas redes neuronais são capazes de aprendizagem. Com o avanço dos sistemas de redes neuronais talvez possa ser possível construir uma máquina que finalmente passe o Teste de Turing. Se um sistema de redes neuronais simular adequadamente o sistema cognitivo humano, então isso será uma experiência a favor da hipótese de que esse sistema cognitivo é constituído por redes neuronais e não de manipulações simbólicas. No entanto, um dos problemas que se depara aos sistemas de redes neuronais é o facto de demorarem demasiado tempo a serem treinados, muito mais tempo do que os sistemas cognitivos humanos. Este facto mostra que as redes neuronais também não têm sido totalmente eficazes na tarefa de simular a cognição humana. Assim sendo, a melhor explicação é a de que os sistemas cognitivos humanos não são constituídos apenas através do treino de redes neuronais.

Uma solução será talvez a de construir sistemas híbridos, parcialmente usando manipulações simbólicas para modelar capacidades tipo linguísticas (sintácticas) e redes neuronais para modelar a aprendizagem. No entanto, a construção de sistemas híbridos está ainda muito longe de produzir máquinas que possam tentar simular as capacidades cognitivas humanas.

Filosofia e Inteligência Artificial

A filosofia contemporânea de tradição analítica tem seguido e participado nos primeiros passos do desenvolvimento da Inteligência Artificial (ver o texto de Sofia Miguens, "Alguns problemas da Filosofia da AI" neste número da Intelecto). No entanto, como nem os sistemas computacionais clássicos, nem os sistemas de redes neuronais têm até hoje sido eficazes na simulação das capacidades cognitivas humanas, não é ainda possível usar os avanços da Inteligência Artificial como testes em relação à constituição da cognição humana. Mas, o desenvolvimento futuro da Inteligência Artificial pode permitir a construção de testes eficazes deste tipo. Se isso acontecer existirão consequências inescapáveis na forma de lidar com vários tópicos tradicionalmente filosóficos. Se um computador conseguir simular com total eficácia as capacidades linguísticas humanas isso terá implicações para a Filosofia da Linguagem (que serão diferentes se esse teste for executado por um computador tradicional e se for executado por um computador de redes neuronais). Se um computador conseguir simular a capacidades de construção conceptual humana isso terá implicações para a Filosofia da Mente. E assim sucessivamente para cada experiência de simulação que tenha sucesso.

A Inteligência Artificial tem até agora centrado os seus esforços na simulação de capacidades cognitivas humanas - na simulação da linguagem, da percepção, reconhecimento de padrões, aprendizagem, etc. É de notar que não existem tentativas de simular outras capacidades humanas, como a afectividade, a personalidade, o sentido estético, o juízo moral, etc. Assim sendo, mesmo que a Inteligência Artificial tenha sucesso em simular as capacidades cognitivas humanas, esse sucesso não pode ainda ser usado num dos debates mais importantes da filosofia da mente: o do problema Mente-Corpo. Esse sucesso indicaria apenas que as capacidades cognitivas humanas são puramente materiais (cerebrais). O materialismo mais geral só poderá ser defendido através dos progressos da Inteligência Artificial se esta for capaz de simular um âmbito vasto de estados mentais humanos, só quando for possível construir "andróides". Claro que se a Inteligência Artificial tiver algum sucesso na simulação de algumas capacidades humanas isso pode ser usado como indicador de que o materialismo acerca do mental é uma tese plausível. No entanto, só com uma simulação mais abrangente das capacidades humanas é que a Inteligência Artificial pode contribuir mais decisivamente para a resolução do problema Mente-Corpo.

Neste novo século teremos de certo oportunidade de testemunhar os avanços da Inteligência Artificial e qualquer filósofo contemporâneo deve continuar a seguir de perto estes avanços e decidir honestamente até que ponto é que esses avanços têm de ser tomados em conta pelas suas propostas. No século XXI a Filosofia e a Inteligência Artificial poderão beneficiar de um intercâmbio estreito com benefícios mútuos. A amplitude desse intercâmbio pode ser assumida de forma diferente por cada filósofo e cientista. Mas, pelo menos para a Filosofia, parece-me claro que os progressos da Inteligência Artificial não devem nem podem ser desprezados.
Sara Bizarro
sarabizarro@yahoo.com

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